Este ensaio sintetiza os pontos
essenciais de um encontro ocorrido no dia 24 de outubro de 2014 na faculdade Anhanguera
de Anápolis. O tema era "Para uma psicologia do diálogo". Tema que,
ao longo dos últimos anos, tem ocupado os meus estudos, reflexões, escritos,
práticas psicoterápicas e inter-relacionais. Antes de iniciar a síntese sobre o
encontro mencionado, gostaria de agradecer a algumas pessoas, e retratar um
pouco da minha experiência.
Gostaria de agradecer a Péricles Ferreira, filósofo, tatuador e escritor autodidata, que
através de seus encontros filosóficos me apresentou uma nova maneira de
experienciar as relações humanas. Nesses encontros, eu pude compreender que
filosofia não é somente uma atividade individual, embora se inicie no
pensamento do sujeito diante das dúvidas e questões existenciais. Pude
compreender que a realização filosófica se efetiva na dialogicidade, no
compartilhamento de ideias e sentimentos expressos, que se dão durante o
encontro. Por meio destes encontros, eu "encontrava" uma nova maneira
de me encontrar com os homens, descobrindo a importância do "nós" e
da humanização dele oriunda. Assim, surgiu o meu interesse pelo estudo das
relações humanas, do encontro...
Agradeço a professora Janaína S. Oliveira, de quem tive a oportunidade de
ser seu aluno. Com ela, pude aprender muito sobre relações humanas, dinâmicas
de grupos, psicologia sócio-histórica entre outras. Suas aulas eram sempre um
convite ao diálogo e a experiência grupal humanizadora, da qual era impossível
não se emocionar. A professora Janaína, devo o meu profundo interesse pelas
relações interpessoais.
Gostaria de agradecer também a Luiz Eduardo Rosa Silva pela
participação nos grupos de estudos e pela possibilidade de mediar alguns
diálogos após a mostra de filmes no cine clube Xícara da Silva, atividade que
faço com muito prazer, pois adoro a sétima arte, tanto do ponto de vista
contemplativo, como criativo. Pude apreender muito com ele, e dialogar
importantes questões sobre arte, filosofia, ciência política... Não
poderia de deixar de agradecer ao meu amigo e parceiro de composição, o músico
César Franklin. Com ele, tive a oportunidade de realizar vários projetos artísticos,
e descobrir que dialogar é um ato de amizade.
Daí
por diante tive a oportunidade de participar como mediador de vários encontros,
psicoterápicos, de estudos, ou ambos. Afinal, quando o encontro atinge um
elevado nível de reciprocidade, no qual os membros se sentem aceitos mutuamente,
tal como constatou Rogers, é inevitável não haver um processo psicoterapêutico.
O senhor Raimundo, um integrante de um destes grupos de seus 55 anos, sempre me
falava após o grupo algo neste sentido: "Alvinan, eu sempre saio dos
grupos renovado, é um experiência muito boa, eu me sinto livre pra falar o que
penso, pra dizer o que sinto". E isto, estudando um texto "Mal estar
na civilização" de Freud. Mas, pensem bem, caros leitores, qual a
utilidade de um estudo que não ultrapassa o campo da teoria, se tornando
vivencial? Como falar do mal estar na civilização, se não consigo me localizar
neste tema, se ele me é indiferente?
Antes
do referido encontro, eu havia me lançado numa intensa e angustiante reflexão:
Seria a psicologia, ciência que ao longo da história serviu as instituições,
produzindo discursos para sua legitimação, capaz de libertar o homem do seu
legado ideológico? Seria esta ciência que sempre se acoplou as demanda do
capitalismo, as demandas de um individuo isolado, capaz de inter-conectar "humanamente" os
homens? Existe, realmente a possibilidade, da psicologia ser uma precursora
"legítima" do desenvolvimento humano dos homens? Estas e demais
questões me fizeram formular alguns caminhos para trilhar, caminhos que não
poderia formular só sozinho, pois, afinal, não iria trilhá-los sozinho.
Compreendendo
esta máxima, cheguei a conclusão que deveria falar sobre diálogo no e pelo
diálogo, ou seja, o tema "diálogo" só poderia ser autenticamente
compreendido se vivenciado em uma relação onde a dialogicidade estivesse
presente. Não poderia fazer um discurso sobre diálogo, seria uma contradição
evidente, já que considero o discurso como o principal oponente do diálogo.
Foucault para falar de discurso, em sua "A ordem do discurso",
recorreu ao discurso, enquanto meio de transmissão da sua temática,
justificando-o dentro de teoria. Eu, seguindo essa lógica, mas questionando a
instrumentalização do discurso, propus para os envolvidos do encontro uma
experiência dialógica, que diferente de uma palestra discursiva, tem o conteúdo
como um mero elemento facilitador, se centrando na relação. O que importa numa
relação dialógica é a participação ativa e compartilhada dos envolvidos no
encontro que, muitas das vezes, pode definir e intervir na temática,
transformando radicalmente os pontos de vista. Nesse sentido, o "palestrante"
se torna um mediador ou facilitador cuja tarefa é organizar consensualmente a
atividade dialógica, direcionando esta através dos seus temas geradores.
Tendo
a relação dialógica como referência, eu trouxe as seguintes questões para
dialogar com grupo: Mas, afinal, o que é diálogo? Qual a diferença entre
discurso e diálogo? Qual a relação entre diálogo e psicologia? Estas questões
foram apresentadas uma após a outra, depois de um compartilhamento entre ambas.
Como era de se esperar de uma relação dialógica, todos os envolvidos deram a
sua opinião, contribuindo pra o desvelar das questões. Assim, foi possível a nós formular
nossas próprias respostas, algumas muito próximas do pensamento do filósofo do
diálogo Martin Buber e do pedagogo e teórico brasileiro Paulo Freire, que eu
havia usado como referências. As respostas eram próximas a estes autores, pois
iam numa mesma linha de pensamento, mas nunca iguais, pois o que dialogávamos
naquele encontro era uma presentificação do nosso momento histórico-social que
se realizava graças a interação criativa das nossas subjetividades, que
produzia uma nova significação. Em resumo, estávamos ali produzindo nossas próprias
concepções sobre diálogo e sua relação com a psicologia.
Nesse sentido, caros leitores, chegamos a algumas proposições
consensuais, respondendo a primeira questão. Tentarei transmiti-las a
vocês, respeitando e traduzindo a vivência do encontro.
- ·
Diálogo é uma relação entre dois seres,
que se faz entre um Eu e um Tu.
- ·
Trata-se de uma relação empática, cuja a
realização se dá por meio de trocas recíprocas.
- ·
Representa a possibilidade de uma real
comunicação por meio da aceitação do outro, e com esta a aceitação de si mesmo.
- ·
Acontece na interface de um encontro:
sua possibilidade ontológica se dá pelo encontro das extremidades, sendo
inter-subjetivo.
- ·
É uma coexistência, ativa, criativa e
compartilhada, onde os evolvidos, tendo o homem e o mundo circundante como
referência, se beneficiam mutuamente, através de relação consensual.
- ·
Deve
ser des-sexualizado, ou seja, desprovido de interesses sexuais, de um ponto de
vista psicanalítico.
- ·
Para haver a dialogicidade, é necessário
que se fale de uma relação entre sujeito, nunca
entre "objetos". No diálogo o sujeito está para um sujeito, e
não para objetos.
- ·
Embora se possa falar de diálogo no
plano do homem com a natureza (animais, plantas) e do homem com os seres
espirituais - tal como coloca Buber - é somente no encontro humano que se
realiza a autêntica ação dialógica. Nela, o homem recebe e endereça seu TU.
Por
meio de uma comunicação compartilhada, encontramos uma nova significação para
esta simples palavra (diálogo), que se objetivou naquele encontro por meio da
nossa volição, engajada neste tema. Cada individuo, ali presente, possuía uma
historicidade subjetiva que se integrou com as dos demais, numa historização
coletiva compartilhada. Assim, pode-se dizer que nossas historicidades
encontraram um elo dialógico e, ao menos naquele momento, puderam se realizar,
mais do que uma simples aquisição intelectual, foi uma vivência empática
humanizadora. Nesta atividade, nós atribuímos a nossa coexistência experiencial
aos conceitos, termos e temas, que foram apenas meros instrumentos, ou como
pensava Heidegger, utensílios. Utensílios usados, neste caso, para refletir e traduzir
a nossa experiência dialógica...
Se
eu tivesse optado por uma prática discursiva (palestra, aula expositiva),
jamais atingiria esse nível de reciprocidade, pois o que estaria sendo
estimulado, na melhor das intenções, seriam conteúdos, e não uma vivência
didática compartilhada. E para que,
vocês compreendam melhor esta crítica que estabeleci ao discurso ou a
discursividade, creio que seja necessário passar para o próximo nível do
encontro. Estabeleci um quadro apontando algumas diferenças entre dialogicidade
e discursividade, e estas aumentaram após a experiência dialógica com o grupo.
Enfoques da Discursividade
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Enfoques da Dialogicidade
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Comunicação monológica
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Comunicação dialógica
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Transferência narcísica
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Transferência empática
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Explora o EU-ISSO
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Experiencia o EU-TU
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Valorização do objeto: Fetichismo
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Valorização do ser humano: humanismo.
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Relações embasadas em interesses sexuais:
hedonismo.
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Relações embasadas no sentimento de amor a
humanidade: altruísmo.
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O foco é o individuo
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O foco é a relação
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Pressupõe
que o poder deve ser delegado a uma figura de autoridade
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Pressupõe
que o poder pode ser compartilhado pela coletividade
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Tendência a alienação e a dominação, entre
o emissor e receptor
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Tendência
a emancipação e libertação da coletividade humana
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Concepção a-histórica da realidade baseada
em um presente fragmentado e
contraditório(pós-modernidade).
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Concepção histórica, baseada na
possibilidade de integrar a realidade, superando as contradições sociais.
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Produz condições para a competição.
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Produz condições para a cooperação.
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Passarei agora para uma análise mais
detalhada deste quadro comparativo. Como é possível perceber no mesmo, existe
uma enorme diferença entre os enfoques da discursividade e os da dialogicidade.
Uma diferença profundamente antagônica a nível de tese e antítese. Enquanto que
a primeira representa o espírito das relações inter-pessoais da nossa época
neoliberal, a segunda representa uma possibilidade de ser, que só pode se
tornar real como crítica da primeira. Trata-se de uma postura revolucionária.
Na
discursividade, a atividade se realiza tendo como padrão uma comunicação
monológica que se resume em um emissor que transfere narcisticamente suas ideias
e sentimentos, tendo em mente que seu (s) receptor (es) os acate (m) de maneira
a-dialógica e a-dialética. Ele, no ato do discurso, se faz uma autoridade, cujo
poder lhe foi delegado por um sistema, e cuja intenção é transmitir uma
mensagem prontificada, estabelecendo, assim, relações de dominação, manipulação
e alienação. Os sujeitos receptores são postos como Eu-Isso, meros objetos, no
qual o discursante realiza seu fetiche Oral. A discursividade ou atividade do
discurso é, como pudemos vivenciar, a forma de comunicação (talvez nem poderia
ser chamada de comunicação) mais abrangente e recorrente do mundo
contemporâneo. Pode-se dizer que sua existência, enquanto atividade humana, representa e traduz a via expressiva das contradições humanas da
contemporaneidade, conservadas pelo sistema capitalista.
Ao
contrário, na dialogicidade, a atividade se realiza numa comunicação entre um
Eu e um Tu no seio de uma relação dual engajada, cuja aceitação do outro é sua
condição de existência. Nela, a transferência ocorre em um nível empático, pois
os envolvidos sentem uns aos outros, não como objetos de suas próprias
projeções narcísicas, mas como sujeitos humanos que necessitam uns dos outros,
para se realizarem como tal. Na dialogicidade, a atividade comunicativa é
nutrida pelo sentimento de amor, mas não se trata aqui de um amor libidinal,
narcísico-sexual, como supõe a psicanálise. Trata-se de um amor humanista, amor
a humanidade, e para não distanciarmos totalmente do conhecimento psicanalítico:
trata-se de uma "sublimação". Ou seja: uma canalização e/ou superação
dos impulsos narcísico-sexuais na relação inter-pessoal pela consideração
existencial do outro enquanto pessoa humana. O sentimento de amor a humanidade é a condição
prévia para a empatia...
Embora
existam inúmeras diferenças e relações entre discurso e diálogo, das quais esse
encontro foi capaz de apontar algumas, creio que estes, devido a sua vastidão,
sejam para um próximo encontro. Falta relatar a vocês, caros leitores, a última parte do presente encontro.
Depois do compartilhamento das diferenças entre diálogo e discurso, eu trouxe a
terceira questão, almejando traçar uma relação entre psicologia e diálogo:
Dentro de tudo isso que foi aqui discutido, a psicologia, no decorrer de sua
curta história, tem se reportado mais a discursividade ou a dialogicidade? Ela tem buscado dialogar com os homens, ou tem
se afastado deste compromisso humano?
E
a reposta por parte de todos os envolvidos foi: a discursividade... Não, a
psicologia tem se afastado deste compromisso humano. Concordamos que, ao longo
de sua existência, a psicologia têm se acoplado as demandas do capitalismo e do
neo-liberalismo, se fechando ora numa psicologia individual patologizante que
responsabiliza o sujeito por sua condição, ora numa psicologia coletiva (das
massas), discursiva e alienante que busca resolver os problemas sociais pela adaptação comportamental as contingências dominantes; Ambas as
psicologias, desconsideram a história e os fatores sociais, e com isso, evidentemente,
negam a dialogicidade e a possibilidade da participação democrática dos homens
na construção do conhecimento psíquico. Ao longo dos anos, a psicologia tem
sido usada como uma ferramenta discursiva para alienar os homens, isto é, para
modelá-los de acordo com as fôrmas do neoliberalismo. Longe de libertá-los, ela tem estimulados a produção de uma discursividade prescritiva que
estimula a objetificação das relações, a individualização do sujeito, fragmentando-o
de si mesmo, dos outros e do mundo concreto.
E
como seria então esta tal psicologia do diálogo que estamos aqui defendendo,
quais seriam suas características? Bem, seriam totalmente inversas ao da
psicologia do discurso que, possivelmente, se desenvolve na"pós-modernidade".
A psicologia do diálogo só pode se
reconhecer como crítica da psicologia do discurso. É pela crítica que ela
encontra a sua razão de existência, podendo se legitimar autenticamente
enquanto prática humanista. Somente assumindo os enfoques da dialogicidade que
a psicologia pode se libertar da discursividade, característica central do
mundo "pós-moderno". E quais seriam as condições prévias para
implementação desta tal psicologia a nível prático? Formulei antes e a após o
encontro, algumas proposições que acredito serem necessárias para que essa
psicologia seja possível. Estas proposições, são, antes de tudo, proposições éticas.
Para que haja uma psicologia do diálogo é necessário:
• Amor
e compromisso a humanidade (humanismo), acima de tudo.
• Humildade
para aceitação do outro.
• Respeito
as diferenças individuais e culturais.
• Capacidade
para uma escuta empática e dialógica.
• Disposição
para o engajamento humano em projetos coletivos.
• Coragem
para se opor ao individualismo discursivo anti-dialógico, próprio do sistema
capitalista neoliberal.
Acho
que, em síntese, é isso, caros leitores. Espero que tenha conseguido transmitir
a síntese deste encontro que pra mim foi tão rico e importante. A partir dele,
pude ampliar minhas noções e pensar, por meio da prática dialógica, numa
psicologia que pode ser a esperança para os nossos tempos. Uma psicologia que
adentrasse nos principais problemas do ser humano contemporâneo, que aqui
coloco como problemas de natureza a-dialógica e anti-dialógica. Posso estar
sendo utópico, mas eu realmente acredito que estas ideias e estes sentimentos
presentes nestes textos, possam ser mais do que meras expressões. Acredito que
estas ideias, estes sentimentos, são ensaios que podem se cumprir renovadamente
em continuas ações. Necessitam ser aperfeiçoados a luz de uma epistemologia
crítica e de uma ontologia criativa. Mas isso só poderá acontecer com a
experiência dialógica, propriamente dita, que aqui descrevi um pequeno, porém,
significativo fragmento.
REFERÊNCIAS
BUBER, Martin. Eu e Tu. 10 ed. São Paulo:
Cenaturo, 137 p. 2001.
BUBER, Martin. Do
diálogo e do dialógico. São Paulo. Perspectiva, 2009.
CATÃO, Alvinan. Psicanálise, Fenomenologia e Existencialismo – um possível diálogo na
construção de uma nova abordagem. Goiânia, Kelps, 2014.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, 20a ed Edições Loyola,
2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de janeiro, 54 ed., paz e terra, 2013.
FREUD,
Sigmund. O mal-estar na civilização (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21).
1996.