quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Para uma Psicologia do Diálogo (Por Alvinan Magno)


            Este ensaio sintetiza os pontos essenciais de um encontro ocorrido no dia 24 de outubro de 2014 na faculdade Anhanguera de Anápolis. O tema era "Para uma psicologia do diálogo". Tema que, ao longo dos últimos anos, tem ocupado os meus estudos, reflexões, escritos, práticas psicoterápicas e inter-relacionais. Antes de iniciar a síntese sobre o encontro mencionado, gostaria de agradecer a algumas pessoas, e retratar um pouco da minha experiência.
            Gostaria de agradecer a Péricles Ferreira, filósofo, tatuador e escritor autodidata, que através de seus encontros filosóficos me apresentou uma nova maneira de experienciar as relações humanas. Nesses encontros, eu pude compreender que filosofia não é somente uma atividade individual, embora se inicie no pensamento do sujeito diante das dúvidas e questões existenciais. Pude compreender que a realização filosófica se efetiva na dialogicidade, no compartilhamento de ideias e sentimentos expressos, que se dão durante o encontro. Por meio destes encontros, eu "encontrava" uma nova maneira de me encontrar com os homens, descobrindo a importância do "nós" e da humanização dele oriunda. Assim, surgiu o meu interesse pelo estudo das relações humanas, do encontro...
            Agradeço a professora Janaína S. Oliveira, de quem tive a oportunidade de ser seu aluno. Com ela, pude aprender muito sobre relações humanas, dinâmicas de grupos, psicologia sócio-histórica entre outras. Suas aulas eram sempre um convite ao diálogo e a experiência grupal humanizadora, da qual era impossível não se emocionar. A professora Janaína, devo o meu profundo interesse pelas relações interpessoais.
            Gostaria de agradecer também a Luiz Eduardo Rosa Silva pela participação nos grupos de estudos e pela possibilidade de mediar alguns diálogos após a mostra de filmes no cine clube Xícara da Silva, atividade que faço com muito prazer, pois adoro a sétima arte, tanto do ponto de vista contemplativo, como criativo. Pude apreender muito com ele, e dialogar importantes questões sobre arte, filosofia, ciência política...  Não poderia de deixar de agradecer ao meu amigo e parceiro de composição, o músico César Franklin. Com ele, tive a oportunidade de realizar vários projetos artísticos, e descobrir que dialogar é um ato de amizade.
            Daí por diante tive a oportunidade de participar como mediador de vários encontros, psicoterápicos, de estudos, ou ambos. Afinal, quando o encontro atinge um elevado nível de reciprocidade, no qual os membros se sentem aceitos mutuamente, tal como constatou Rogers, é inevitável não haver um processo psicoterapêutico. O senhor Raimundo, um integrante de um destes grupos de seus 55 anos, sempre me falava após o grupo algo neste sentido: "Alvinan, eu sempre saio dos grupos renovado, é um experiência muito boa, eu me sinto livre pra falar o que penso, pra dizer o que sinto". E isto, estudando um texto "Mal estar na civilização" de Freud. Mas, pensem bem, caros leitores, qual a utilidade de um estudo que não ultrapassa o campo da teoria, se tornando vivencial? Como falar do mal estar na civilização, se não consigo me localizar neste tema, se ele me é indiferente?
            Antes do referido encontro, eu havia me lançado numa intensa e angustiante reflexão: Seria a psicologia, ciência que ao longo da história serviu as instituições, produzindo discursos para sua legitimação, capaz de libertar o homem do seu legado ideológico? Seria esta ciência que sempre se acoplou as demanda do capitalismo, as demandas de um individuo isolado, capaz de inter-conectar "humanamente" os homens? Existe, realmente a possibilidade, da psicologia ser uma precursora "legítima" do desenvolvimento humano dos homens? Estas e demais questões me fizeram formular alguns caminhos para trilhar, caminhos que não poderia formular só sozinho, pois, afinal, não iria trilhá-los sozinho.
            Compreendendo esta máxima, cheguei a conclusão que deveria falar sobre diálogo no e pelo diálogo, ou seja, o tema "diálogo" só poderia ser autenticamente compreendido se vivenciado em uma relação onde a dialogicidade estivesse presente. Não poderia fazer um discurso sobre diálogo, seria uma contradição evidente, já que considero o discurso como o principal oponente do diálogo. Foucault para falar de discurso, em sua "A ordem do discurso", recorreu ao discurso, enquanto meio de transmissão da sua temática, justificando-o dentro de teoria. Eu, seguindo essa lógica, mas questionando a instrumentalização do discurso, propus para os envolvidos do encontro uma experiência dialógica, que diferente de uma palestra discursiva, tem o conteúdo como um mero elemento facilitador, se centrando na relação. O que importa numa relação dialógica é a participação ativa e compartilhada dos envolvidos no encontro que, muitas das vezes, pode definir e intervir na temática, transformando radicalmente os pontos de vista. Nesse sentido, o "palestrante" se torna um mediador ou facilitador cuja tarefa é organizar consensualmente a atividade dialógica, direcionando esta através dos seus temas geradores.
            Tendo a relação dialógica como referência, eu trouxe as seguintes questões para dialogar com grupo: Mas, afinal, o que é diálogo? Qual a diferença entre discurso e diálogo? Qual a relação entre diálogo e psicologia? Estas questões foram apresentadas uma após a outra, depois de um compartilhamento entre ambas. Como era de se esperar de uma relação dialógica, todos os envolvidos deram a sua opinião, contribuindo pra o desvelar  das questões. Assim, foi possível a nós formular nossas próprias respostas, algumas muito próximas do pensamento do filósofo do diálogo Martin Buber e do pedagogo e teórico brasileiro Paulo Freire, que eu havia usado como referências. As respostas eram próximas a estes autores, pois iam numa mesma linha de pensamento, mas nunca iguais, pois o que dialogávamos naquele encontro era uma presentificação do nosso momento histórico-social que se realizava graças a interação criativa das nossas subjetividades, que produzia uma nova significação. Em resumo, estávamos ali produzindo nossas próprias concepções sobre diálogo e sua relação com a psicologia.
           Nesse sentido, caros leitores, chegamos a algumas proposições consensuais, respondendo a primeira questão. Tentarei transmiti-las a vocês, respeitando  e traduzindo a vivência do encontro.

  • ·         Diálogo é uma relação entre dois seres, que se faz entre um Eu e um Tu.
  • ·         Trata-se de uma relação empática, cuja a realização se dá por meio de trocas recíprocas.
  • ·         Representa a possibilidade de uma real comunicação por meio da aceitação do outro, e com esta a aceitação de si mesmo.
  • ·         Acontece na interface de um encontro: sua possibilidade ontológica se dá pelo encontro das extremidades, sendo inter-subjetivo.
  • ·         É uma coexistência, ativa, criativa e compartilhada, onde os evolvidos, tendo o homem e o mundo circundante como referência, se beneficiam mutuamente, através de relação consensual. 
  • ·          Deve ser des-sexualizado, ou seja, desprovido de interesses sexuais, de um ponto de vista psicanalítico.
  • ·         Para haver a dialogicidade, é necessário que se fale de uma relação entre sujeito, nunca  entre "objetos". No diálogo o sujeito está para um sujeito, e não para objetos. 
  • ·         Embora se possa falar de diálogo no plano do homem com a natureza (animais, plantas) e do homem com os seres espirituais - tal como coloca Buber - é somente no encontro humano que se realiza a autêntica ação dialógica. Nela, o homem recebe e endereça seu TU.

            Por meio de uma comunicação compartilhada, encontramos uma nova significação para esta simples palavra (diálogo), que se objetivou naquele encontro por meio da nossa volição, engajada neste tema. Cada individuo, ali presente, possuía uma historicidade subjetiva que se integrou com as dos demais, numa historização coletiva compartilhada. Assim, pode-se dizer que nossas historicidades encontraram um elo dialógico e, ao menos naquele momento, puderam se realizar, mais do que uma simples aquisição intelectual, foi uma vivência empática humanizadora. Nesta atividade, nós atribuímos a nossa coexistência experiencial aos conceitos, termos e temas, que foram apenas meros instrumentos, ou como pensava Heidegger, utensílios. Utensílios usados, neste caso, para refletir e traduzir a nossa experiência dialógica...
            Se eu tivesse optado por uma prática discursiva (palestra, aula expositiva), jamais atingiria esse nível de reciprocidade, pois o que estaria sendo estimulado, na melhor das intenções, seriam conteúdos, e não uma vivência didática compartilhada.  E para que, vocês compreendam melhor esta crítica que estabeleci ao discurso ou a discursividade, creio que seja necessário passar para o próximo nível do encontro. Estabeleci um quadro apontando algumas diferenças entre dialogicidade e discursividade, e estas aumentaram após a experiência dialógica com o grupo.


Enfoques da Discursividade
Enfoques da Dialogicidade
Comunicação monológica
Comunicação dialógica
Transferência narcísica
Transferência empática
 Explora o EU-ISSO
Experiencia o EU-TU
Valorização do objeto: Fetichismo 
Valorização do ser humano: humanismo.
Relações embasadas em interesses sexuais: hedonismo.
Relações embasadas no sentimento de amor a humanidade: altruísmo.
O foco é o individuo
O foco é a relação
Pressupõe  que o poder deve ser delegado a uma figura de autoridade
Pressupõe  que o poder pode ser compartilhado pela coletividade
Tendência a alienação e a dominação, entre o emissor e receptor
Tendência  a emancipação e libertação da coletividade humana
Concepção a-histórica da realidade baseada em um presente fragmentado  e contraditório(pós-modernidade).
Concepção histórica, baseada na possibilidade de integrar a realidade, superando as contradições sociais.
Produz condições para a competição.
Produz condições para a cooperação.

            

























            
            Passarei agora para uma análise mais detalhada deste quadro comparativo. Como é possível perceber no mesmo, existe uma enorme diferença entre os enfoques da discursividade e os da dialogicidade. Uma diferença profundamente antagônica a nível de tese e antítese. Enquanto que a primeira representa o espírito das relações inter-pessoais da nossa época neoliberal, a segunda representa uma possibilidade de ser, que só pode se tornar real como crítica da primeira. Trata-se de uma postura revolucionária.
            Na discursividade, a atividade se realiza tendo como padrão uma comunicação monológica que se resume em um emissor que transfere narcisticamente suas ideias e sentimentos, tendo em mente que seu (s) receptor (es) os acate (m) de maneira a-dialógica e a-dialética. Ele, no ato do discurso, se faz uma autoridade, cujo poder lhe foi delegado por um sistema, e cuja intenção é transmitir uma mensagem prontificada, estabelecendo, assim, relações de dominação, manipulação e alienação. Os sujeitos receptores são postos como Eu-Isso, meros objetos, no qual o discursante realiza seu fetiche Oral. A discursividade ou atividade do discurso é, como pudemos vivenciar, a forma de comunicação (talvez nem poderia ser chamada de comunicação) mais abrangente e recorrente do mundo contemporâneo. Pode-se dizer que sua existência, enquanto atividade humana, representa e traduz a via expressiva das contradições humanas da contemporaneidade, conservadas pelo sistema capitalista. 
           Ao contrário, na dialogicidade, a atividade se realiza numa comunicação entre um Eu e um Tu no seio de uma relação dual engajada, cuja aceitação do outro é sua condição de existência. Nela, a transferência ocorre em um nível empático, pois os envolvidos sentem uns aos outros, não como objetos de suas próprias projeções narcísicas, mas como sujeitos humanos que necessitam uns dos outros, para se realizarem como tal. Na dialogicidade, a atividade comunicativa é nutrida pelo sentimento de amor, mas não se trata aqui de um amor libidinal, narcísico-sexual, como supõe a psicanálise. Trata-se de um amor humanista, amor a humanidade, e para não distanciarmos totalmente do conhecimento psicanalítico: trata-se de uma "sublimação". Ou seja: uma canalização e/ou superação dos impulsos narcísico-sexuais na relação inter-pessoal pela consideração existencial do outro enquanto pessoa humana.  O sentimento de amor a humanidade é a condição prévia para a empatia...
         Embora existam inúmeras diferenças e relações entre discurso e diálogo, das quais esse encontro foi capaz de apontar algumas, creio que estes, devido a sua vastidão, sejam  para um próximo encontro. Falta relatar a vocês, caros leitores, a última parte do presente encontro. Depois do compartilhamento das diferenças entre diálogo e discurso, eu trouxe a terceira questão, almejando traçar uma relação entre psicologia e diálogo: Dentro de tudo isso que foi aqui discutido, a psicologia, no decorrer de sua curta história, tem se reportado mais a discursividade ou a dialogicidade?  Ela tem buscado dialogar com os homens, ou tem se afastado deste compromisso humano?
            E a reposta por parte de todos os envolvidos foi: a discursividade... Não, a psicologia tem se afastado deste compromisso humano. Concordamos que, ao longo de sua existência, a psicologia têm se acoplado as demandas do capitalismo e do neo-liberalismo, se fechando ora numa psicologia individual patologizante que responsabiliza o sujeito por sua condição, ora numa psicologia coletiva (das massas), discursiva e alienante que busca resolver os problemas sociais pela adaptação comportamental  as contingências dominantes; Ambas as psicologias, desconsideram a história e os fatores sociais, e com isso, evidentemente, negam a dialogicidade e a possibilidade da participação democrática dos homens na construção do conhecimento psíquico. Ao longo dos anos, a psicologia tem sido usada como uma ferramenta discursiva para alienar os homens, isto é, para modelá-los de acordo com as fôrmas do neoliberalismo. Longe de libertá-los, ela tem estimulados a produção de uma discursividade prescritiva que estimula a objetificação das relações, a individualização do sujeito, fragmentando-o de si mesmo, dos outros e do mundo concreto.
            E como seria então esta tal psicologia do diálogo que estamos aqui defendendo, quais seriam suas características? Bem, seriam totalmente inversas ao da psicologia do discurso que, possivelmente, se desenvolve na"pós-modernidade". A psicologia do diálogo só pode se reconhecer como crítica da psicologia do discurso. É pela crítica que ela encontra a sua razão de existência, podendo se legitimar autenticamente enquanto prática humanista. Somente assumindo os enfoques da dialogicidade que a psicologia pode se libertar da discursividade, característica central do mundo "pós-moderno". E quais seriam as condições prévias para implementação desta tal psicologia a nível prático? Formulei antes e a após o encontro, algumas proposições que acredito serem necessárias para que essa psicologia seja possível. Estas proposições, são, antes de tudo, proposições éticas. Para que haja uma psicologia do diálogo é necessário:

     Amor e compromisso a humanidade (humanismo), acima de tudo.
     Humildade para aceitação do outro.
    Respeito as diferenças individuais e culturais.
   Capacidade para uma escuta empática e dialógica.
   Disposição para o engajamento humano em projetos coletivos.
  Coragem para se opor ao individualismo discursivo anti-dialógico, próprio do sistema capitalista neoliberal.

            Acho que, em síntese, é isso, caros leitores. Espero que tenha conseguido transmitir a síntese deste encontro que pra mim foi tão rico e importante. A partir dele, pude ampliar minhas noções e pensar, por meio da prática dialógica, numa psicologia que pode ser a esperança para os nossos tempos. Uma psicologia que adentrasse nos principais problemas do ser humano contemporâneo, que aqui coloco como problemas de natureza a-dialógica e anti-dialógica. Posso estar sendo utópico, mas eu realmente acredito que estas ideias e estes sentimentos presentes nestes textos, possam ser mais do que meras expressões. Acredito que estas ideias, estes sentimentos, são ensaios que podem se cumprir renovadamente em continuas ações. Necessitam ser aperfeiçoados a luz de uma epistemologia crítica e de uma ontologia criativa. Mas isso só poderá acontecer com a experiência dialógica, propriamente dita, que aqui descrevi um pequeno, porém, significativo fragmento.
   

REFERÊNCIAS

BUBER, Martin. Eu e Tu. 10 ed.  São Paulo: Cenaturo, 137 p. 2001.

BUBER, Martin.  Do diálogo e do dialógico. São Paulo. Perspectiva, 2009.

CATÃO, Alvinan. Psicanálise, Fenomenologia e Existencialismo – um possível diálogo na construção de uma nova abordagem. Goiânia, Kelps, 2014.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, 20a ed Edições Loyola, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de janeiro, 54 ed., paz e terra, 2013.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). 1996.

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