Ao longo de minhas
investigações filosóficas1, tenho sustentado que o “encantamento”
artístico, produzido pelo princípio Ápeiron, tem perpetuado historicamente os
paradigmas, as injurias, os mitos e os erros históricos, enfraquecendo a
reflexão filosófica e o seu movimento dialético sobre o mundo concreto,
resultando num evidente atraso no desenvolvimento humano da humanidade. Esse
encantamento, oriundo de uma contradição entre criador e criatura, foi o
responsável pela aceitação e pela transmissão cultural das superstições, das
significações mágicas e das ideologias (ideias encantadas pelo capitalismo) ao
longo da história. Levantei a hipótese de que este encantamento tenha surgido
com a transição evolutiva do homem primitivo pré-histórico - que era inconsciente
de sua existência e dependente dos estímulos ambientais - para o homem
histórico – que já possuía uma consciência intuitiva, ou seja, era um ser existencial.
Nos ensaios anteriores, criei alguns conceitos na tentativa de desenvolver
posturas ético-filosóficas para a superação filosófica desta problemática.
Sou levado a colocar
que a representação encantada (encantamento) surgiu da distorção
senso-perceptiva dos primeiros seres humanos intuitivos, diante de fenômenos
desconhecidos a aquela consciência intuitiva. Com a evolução biológica dos
seres humanos, houve a conversão do medo instintivo em angustia existencial.
Esta, juntamente com as inúmeras capacidades criativas daquela consciência,
fizeram com que os primeiros seres humanos (Sapiens) criassem significados
mágicos para tampar as lacunas do vazio existencial, este que foi efeito da
percepção consciente dos mesmos sobre a sua situação mortal. Anteriormente a
morte encontrava se única e exclusivamente ligada ao instinto de sobrevivência
que se fazia mecânico em sintonia com os estímulos do meio ambiente. O instinto
de sobrevivência, nesta ordem evolutiva, também se transforma, adquirindo uma
forma existencial. Chamarei aqui de pulsão existencial, a transposição
conversiva do instinto de sobrevivência para uma força existencial-criativa.
Esta pulsão estava destinada para um único fim: a saciação das necessidades
existenciais, por meio da produção criativa de significados para, então,
emergente existência. Se a fome representa um sinal de alerta do corpo que
mobiliza o organismo ao ato de comer, a angustia (pulsão existencial)
representa o sinal de alerta da existência que a mobiliza ao ato de criar um
sentido; sentido para tamponar o nada.
Os primeiros sentidos
(significados) foram criados graças a percepção intuitiva dos primeiros homens.
Estes sentidos, como já foi dito, se situavam sempre no mundo externo, não
havendo espaço para a compreensão da participação subjetiva-protagonizante dos
seres que estavam existencializando o processo. Os homens intuitivos não eram
capazes de abstrair a realidade tal como esta, de fato, era, ou seja, de
maneira lógica ou racional. Talvez o termo "distorção
senso-perceptiva" seja um tanto pesado para representar este fenômeno,
pois aqueles homens estavam tendo as suas primeiras experiências existenciais,
constituindo, ao longo destas, suas memórias e historicidades. O fato é que, em
tais condições, mesmo que sejam considerados errôneos em nossa concepção lógica
contemporânea, tais sentidos foram formas de compreender e significar a
existência com base nesta estrutura cognitiva ancestral. Nesse sentido, um raio
que caísse do céu poderia facilmente ser interpretado como uma manifestação
mágica, poderosa, que escapava aos domínios da consciência. Um imaginário
criativo, angustiado pela pulsão existencial, poderia interpretar um meteorito
que caiu do céu, como um Deus, ou obra do mesmo, só necessitaria de condições
propicias e específicas.
A pulsão existencial
ancestral ainda possuía vínculos com o instinto, no sentido de atingir a sua
meta, não se preocupando com a realidade das coisas. É provável que o
aparecimento existencial, juntamente com a sua finitude (mortalidade), tenha
gerado no homem um de seus maiores traumas, o que, na história das culturas,
nunca foi aceito. Por meio deste trauma, o homem se descobriu um ser impotente,
fraco, pequeno, e como resposta a isto o organismo, já então existente,
pulsionalmente motivado, buscou tamponar esta realidade cruel criando, assim os
“significados criadores”.
A emergência
angustiante, produzida pela pulsão existencial, fez com que os homens
primitivos criassem seus primeiros sistemas totêmico-religiosos que eram sempre
representados em suas pinturas rupestres, esculturas e outros itens adornados.
Como se percebe, a arte, ou seja o processo artístico-criativo estava ali desde
o começo, sendo o “principio” desta contradição entre criatura e criador.
Chamei de princípio Ápeiron, ou princípio artístico, a lógica que possivelmente
tenha produzido esta contradição. Embora este processo de produção de sentido
tenha ocorrido graças a criatividade artística do homem, tal processo não foi percebido
por ele, sendo cristalizado na memória cultural, perpassado a seus descendentes
por meio da linguagem. Desde então, a criação, as obras de arte, cujo simbólico
superou sua materialidade, adquiriram função de criadoras, perpetuando na
história, e colocando os homens como espectadores de sua própria criação,
inibindo a compreensão do princípio artístico.
A humanidade transferiu
este legado ancestral inautêntico através da cultura, alterando-o indireta e
inconscientemente, porém sua essência se manteve viva nos diversos
encantamentos contemporâneos.
No texto "O desencantamento total
do mundo", categorizei duas formas de encantamento que persistem na
contemporaneidade: os encantamento gerados pelo conservadorismo histórico e os
encantamentos gerados pela emergente comercialidade do ser. O primeiro se
refere aos encantamentos dos grandes sistemas religiosos e das superstições que
se conservam no decorrer da história. É nutrido pela fé religiosa e pela crença
no sobrenatural ou além-mundo, sendo também encontrado em superstições, mitos e
lendas. Esta categoria de encantamento é existencializada por bilhões de
pessoas do mundo inteiro. Embora suas noções mágicas, anímicas e sobrenaturais
sejam facilmente questionadas quando o assunto é materialidade, seus adeptos as
concebem, em essência, mais como sentido existencial, mesmo não tendo
consciência de tal fato. De um ponto de vista humanista, o perigo dessa forma
de encantamento, fora a transferência do protagonismo existencial, consiste
numa confusão extrema entre as três esferas categorizadas por Max Weber: Ética,
Arte e Ciência. Os conhecimentos religiosos e supersticiosos tendem a misturar
as diversas categorias da existência humana sobe uma única égide: a do
encantamento. As categorias existenciais, filosoficamente compreendidas ao
longo da história, não são dialeticamente compreendidas pela lógica encantada
dos sistemas religiosos e superstições, pois existe nestes uma miscigenação
encantada das categorias weberianas o que produz uma resistência filosófica.
O “encantamento gerado
pela emergente comercialidade do ser” corresponde a ideologia
capitalista-neoliberal que, apesar de ter como meta o material, utiliza de
ideias encantadas para atingir seus fins exploratórios, promovendo a
desumanização do ser humano e a supervalorização (encantada) do objeto
(Fetichismo). Sujeito e objeto, se alternam conforme a lógica encantada do
capitalismo. Este encantamento faz parte
da vida da maioria das pessoas do globo. É o propulsor de um individualismo
antidialógico, que afasta o sujeito de uma existencialidade concreta
no-mundo-com-os-outros. Este encantamento, historicamente fragmentado, é
nutrido por fantasias mercantis que nunca se saciam, e tendem a gerar pessoas
narcisistas frustradas, motivadas por pulsões auto-eróticas, encobrindo
problemas globais como a fome, a miséria... em resumo: a total desumanização do
ser. Este encantamento é, em minha opinião, a pior forma de encantamento já
produzida pela humanidade.
Em ambas as categorias
de encantamentos, a pulsão existencial é desviada de sua meta
criativa-consciente, sendo inautêntica. Pois o criador está sempre idolatrando
suas criações, projetando-se nelas inconscientemente, como se estas tivessem
vida própria, independentemente de sua existência. Sejam os Deuses ou quaisquer
ídolos, sejam as marcas e os slogam, são somente criações...
É preciso retomar a
posição de criador, protagonista do processo existencial. E para isso somente a
reflexão filosófica (abstração) e a intuição artística unidas, podem
interconectar esse elo historicamente fragmentado, corrigindo o erro ancestral,
devolvendo a nós, humanos, o que nos é de direito, mas que sempre, por motivos
inconscientes, fizemos sempre questão de transferir: nossa CRIATIVIDADE!
Perfeito!
ResponderExcluirObrigado!
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