segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Pulsão existencial e sua meta criativa (por Alvinan Magno)

Ao longo de minhas investigações filosóficas1, tenho sustentado que o “encantamento” artístico, produzido pelo princípio Ápeiron, tem perpetuado historicamente os paradigmas, as injurias, os mitos e os erros históricos, enfraquecendo a reflexão filosófica e o seu movimento dialético sobre o mundo concreto, resultando num evidente atraso no desenvolvimento humano da humanidade. Esse encantamento, oriundo de uma contradição entre criador e criatura, foi o responsável pela aceitação e pela transmissão cultural das superstições, das significações mágicas e das ideologias (ideias encantadas pelo capitalismo) ao longo da história. Levantei a hipótese de que este encantamento tenha surgido com a transição evolutiva do homem primitivo pré-histórico - que era inconsciente de sua existência e dependente dos estímulos ambientais - para o homem histórico – que já possuía uma consciência intuitiva, ou seja, era um ser existencial. Nos ensaios anteriores, criei alguns conceitos na tentativa de desenvolver posturas ético-filosóficas para a superação filosófica desta problemática.
Sou levado a colocar que a representação encantada (encantamento) surgiu da distorção senso-perceptiva dos primeiros seres humanos intuitivos, diante de fenômenos desconhecidos a aquela consciência intuitiva. Com a evolução biológica dos seres humanos, houve a conversão do medo instintivo em angustia existencial. Esta, juntamente com as inúmeras capacidades criativas daquela consciência, fizeram com que os primeiros seres humanos (Sapiens) criassem significados mágicos para tampar as lacunas do vazio existencial, este que foi efeito da percepção consciente dos mesmos sobre a sua situação mortal. Anteriormente a morte encontrava se única e exclusivamente ligada ao instinto de sobrevivência que se fazia mecânico em sintonia com os estímulos do meio ambiente. O instinto de sobrevivência, nesta ordem evolutiva, também se transforma, adquirindo uma forma existencial. Chamarei aqui de pulsão existencial, a transposição conversiva do instinto de sobrevivência para uma força existencial-criativa. Esta pulsão estava destinada para um único fim: a saciação das necessidades existenciais, por meio da produção criativa de significados para, então, emergente existência. Se a fome representa um sinal de alerta do corpo que mobiliza o organismo ao ato de comer, a angustia (pulsão existencial) representa o sinal de alerta da existência que a mobiliza ao ato de criar um sentido; sentido para tamponar o nada.
Os primeiros sentidos (significados) foram criados graças a percepção intuitiva dos primeiros homens. Estes sentidos, como já foi dito, se situavam sempre no mundo externo, não havendo espaço para a compreensão da participação subjetiva-protagonizante dos seres que estavam existencializando o processo. Os homens intuitivos não eram capazes de abstrair a realidade tal como esta, de fato, era, ou seja, de maneira lógica ou racional. Talvez o termo "distorção senso-perceptiva" seja um tanto pesado para representar este fenômeno, pois aqueles homens estavam tendo as suas primeiras experiências existenciais, constituindo, ao longo destas, suas memórias e historicidades. O fato é que, em tais condições, mesmo que sejam considerados errôneos em nossa concepção lógica contemporânea, tais sentidos foram formas de compreender e significar a existência com base nesta estrutura cognitiva ancestral. Nesse sentido, um raio que caísse do céu poderia facilmente ser interpretado como uma manifestação mágica, poderosa, que escapava aos domínios da consciência. Um imaginário criativo, angustiado pela pulsão existencial, poderia interpretar um meteorito que caiu do céu, como um Deus, ou obra do mesmo, só necessitaria de condições propicias e específicas.
A pulsão existencial ancestral ainda possuía vínculos com o instinto, no sentido de atingir a sua meta, não se preocupando com a realidade das coisas. É provável que o aparecimento existencial, juntamente com a sua finitude (mortalidade), tenha gerado no homem um de seus maiores traumas, o que, na história das culturas, nunca foi aceito. Por meio deste trauma, o homem se descobriu um ser impotente, fraco, pequeno, e como resposta a isto o organismo, já então existente, pulsionalmente motivado, buscou tamponar esta realidade cruel criando, assim os “significados criadores”.
A emergência angustiante, produzida pela pulsão existencial, fez com que os homens primitivos criassem seus primeiros sistemas totêmico-religiosos que eram sempre representados em suas pinturas rupestres, esculturas e outros itens adornados. Como se percebe, a arte, ou seja o processo artístico-criativo estava ali desde o começo, sendo o “principio” desta contradição entre criatura e criador. Chamei de princípio Ápeiron, ou princípio artístico, a lógica que possivelmente tenha produzido esta contradição. Embora este processo de produção de sentido tenha ocorrido graças a criatividade artística do homem, tal processo não foi percebido por ele, sendo cristalizado na memória cultural, perpassado a seus descendentes por meio da linguagem. Desde então, a criação, as obras de arte, cujo simbólico superou sua materialidade, adquiriram função de criadoras, perpetuando na história, e colocando os homens como espectadores de sua própria criação, inibindo a compreensão do princípio artístico.
A humanidade transferiu este legado ancestral inautêntico através da cultura, alterando-o indireta e inconscientemente, porém sua essência se manteve viva nos diversos encantamentos contemporâneos.
No texto "O desencantamento total do mundo", categorizei duas formas de encantamento que persistem na contemporaneidade: os encantamento gerados pelo conservadorismo histórico e os encantamentos gerados pela emergente comercialidade do ser. O primeiro se refere aos encantamentos dos grandes sistemas religiosos e das superstições que se conservam no decorrer da história. É nutrido pela fé religiosa e pela crença no sobrenatural ou além-mundo, sendo também encontrado em superstições, mitos e lendas. Esta categoria de encantamento é existencializada por bilhões de pessoas do mundo inteiro. Embora suas noções mágicas, anímicas e sobrenaturais sejam facilmente questionadas quando o assunto é materialidade, seus adeptos as concebem, em essência, mais como sentido existencial, mesmo não tendo consciência de tal fato. De um ponto de vista humanista, o perigo dessa forma de encantamento, fora a transferência do protagonismo existencial, consiste numa confusão extrema entre as três esferas categorizadas por Max Weber: Ética, Arte e Ciência. Os conhecimentos religiosos e supersticiosos tendem a misturar as diversas categorias da existência humana sobe uma única égide: a do encantamento. As categorias existenciais, filosoficamente compreendidas ao longo da história, não são dialeticamente compreendidas pela lógica encantada dos sistemas religiosos e superstições, pois existe nestes uma miscigenação encantada das categorias weberianas o que produz uma resistência filosófica.
O “encantamento gerado pela emergente comercialidade do ser” corresponde a ideologia capitalista-neoliberal que, apesar de ter como meta o material, utiliza de ideias encantadas para atingir seus fins exploratórios, promovendo a desumanização do ser humano e a supervalorização (encantada) do objeto (Fetichismo). Sujeito e objeto, se alternam conforme a lógica encantada do capitalismo.  Este encantamento faz parte da vida da maioria das pessoas do globo. É o propulsor de um individualismo antidialógico, que afasta o sujeito de uma existencialidade concreta no-mundo-com-os-outros. Este encantamento, historicamente fragmentado, é nutrido por fantasias mercantis que nunca se saciam, e tendem a gerar pessoas narcisistas frustradas, motivadas por pulsões auto-eróticas, encobrindo problemas globais como a fome, a miséria... em resumo: a total desumanização do ser. Este encantamento é, em minha opinião, a pior forma de encantamento já produzida pela humanidade.
Em ambas as categorias de encantamentos, a pulsão existencial é desviada de sua meta criativa-consciente, sendo inautêntica. Pois o criador está sempre idolatrando suas criações, projetando-se nelas inconscientemente, como se estas tivessem vida própria, independentemente de sua existência. Sejam os Deuses ou quaisquer ídolos, sejam as marcas e os slogam, são somente criações...
É preciso retomar a posição de criador, protagonista do processo existencial. E para isso somente a reflexão filosófica (abstração) e a intuição artística unidas, podem interconectar esse elo historicamente fragmentado, corrigindo o erro ancestral, devolvendo a nós, humanos, o que nos é de direito, mas que sempre, por motivos inconscientes, fizemos sempre questão de transferir: nossa CRIATIVIDADE!

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