sábado, 2 de dezembro de 2017

A Psicologia do Diálogo é ética e politicamente anarquista

Algum tempo atrás escrevi um ensaio, disponível nesse blog1, sobre as possibilidades de concepção de uma Psicologia do Diálogo. A partir da minha experiência teórica e prática com grupos, pensando as relações interpessoais, propus algumas definições de diálogo e problematizei como a psicologia, ciência burguesa que trabalhou e ainda trabalha para o capitalismo, o Estado e suas instituições, poderia contribuir para o desenvolvimento humano para além das ideologias.
Em tal ensaio, descrevi algumas proposições ético-políticas iniciais para a concepção dessa Psicologia do Diálogo, após discutir os conceitos de diálogo, discurso, dialogicidade e discursividade.  Essa psicologia, ontologicamente, se revelou crítica da psicologia do discurso, que se desenvolve na pós-modernidade, legitimando a individualidade em detrimento da coletividade e contribuindo, do ponto de vista das relações humanas, para a perpetuação da lógica do sistema que produz e mantem as desigualdades. Essas proposições são:    
  • ·         Amor e compromisso à humanidade (humanismo), acima de tudo.
  • ·         Humildade para aceitação do outro.
  • ·         Respeito às diferenças individuais e culturais.
  • ·         Capacidade para uma escuta empática e dialógica.
  • ·         Disposição para o engajamento humano em projetos coletivos.
  • ·         Coragem para se opor ao individualismo discursivo a-dialógico e anti-dialógico, próprio do sistema capitalista neoliberal.
Embora, dentre as proposições para a existência da Psicologia do Diálogo, tenha proposto o “humanismo”, é importante não confundir com o humanismo tradicional (cristão; renascentista; positivista) - esse que a psicologia do discurso também se utiliza de seus aspectos ideológicos para a legitimação do sistema que produz e mantem as desigualdades sociais. Basta olharmos pra a história do movimento humanista para perceber o quanto esse serviu na construção de discursos para legitimar as práticas burguesas, constituindo as bases de uma racionalidade elitista que justifica a dominação humana, permitindo a segregação e as desigualdades sociais. Humanismo aqui também não significa reforçar o narcisismo humano, colocando o mesmo no centro do mundo, como ideologicamente os nossos burgueses intelectuais pensaram e escreveram combatendo os valores da nobreza conservadora, mas reconhecer enquanto humana aquilo que é de competência e responsabilidade do homem: o mundo humano. Reconhecer o mundo enquanto concreto para além das representações encantadas e ideológicas.  
E quanto à questão do respeito às diferenças individuais e culturais? É possível falar em respeito em uma sociedade de classes, no qual a injustiça está em sua lógica, na forma como está organizada? Bem, devemos ter cuidado ao problematizar essa questão. Se olharmos de perto, perceberemos que a ideologia do respeito às diferenças também contribui para o sistema que produz e mantem as desigualdades. Essa é, em parte, produzida pela dinâmica do capitalismo neoliberal. Tal ideologia é usada para legitimar e justificar as diferenças entre classes sociais, por meio de discursos, como por exemplo, os da meritocracia que buscam justificar a ascensão social e a existência da sociedade de classes.
Uma diferença primordial e concreta que organiza esse sistema pode ser definida na categoria: classe -dominante e dominada. A classe dominante é composta por aqueles que detêm os meios de produção e o capital. A classe dominada é composta por aqueles que vendem a sua força de trabalho para receber uma pequena fatia dessa produção. Nesse tipo de organização, respeitar significa aceitar o sistema tal como ele está estruturado, as relações de dominação entre classe dominada e dominante; significa obedecer à lei, curvar-se diante da autoridade estatal; significa participar da lógica. E então?
Quando falamos em diferenças individuais, implica em considerar a subjetividade do indivíduo, as características biológicas, psicológicas e sociais que definem uma pessoa, que está em um mundo, em uma época, que interage com seus semelhantes em uma sociedade marcada pela lógica da dominação, da exploração e da desigualdade. No que compete às diferenças culturais, entendemos as múltiplas determinações biopsicossociais que definem certa organização civilizatória. Uma organização civilizatória se difere de outra por um conjunto de características secundárias, mas se assemelham na sua estrutura, essa constituída e organizada pela presença de um organismo estatal.
Em termos concretos, respeitar as diferenças individuais e culturais significa compreender a pessoa e a cultura em suas múltiplas determinações. Significa compreender o seu discurso, o que há por detrás. Respeitar, nessa perspectiva, não significa aceitar, tampouco concordar com determinados discursos, ou seja, com a tentativa de legitimação por parte de seu lugar subjetivo e/ou social. Respeitar significa questionar: entender o processo da pessoa e da cultura, seus problemas, suas contradições. O respeito, propriamente dito, nesse sentido, só pode ser pensado e realizado por meio de uma ética libertária que tem a coletividade como objeto.
Quando falamos de “disposição para projetos coletivos”, nos referimos a projetos que buscam, através da formação de grupos, proporcionar e/ou criar condições para o desenvolvimento de uma consciência libertária frente às contradições sociais do sistema que produz e mantem as desigualdades. Trata-se de projetos cuja finalidade é o enfrentamento dos valores capitalistas neoliberais, propondo atividades cooperativas que os contraponha. A greve, o boicote, a manifestação contra a violência estatal representam formas legítimas de engajamento em projetos coletivos, pois envolvem não somente a discussão sobre a opressão do Estado, mas uma ação coletiva cujo sentido é atacar esse tipo de organização social.
Nessa atual fase do neoliberalismo, é preciso ter cuidado mesmo com a noção de projetos coletivos. A apropriação da ideia de projeto coletivo, da cooperação é usada a favor do capital como acontecem nas diversas instituições, dentre as quais as empresas. Nessas últimas, o coaching e o psicólogo organizacional realizam dinâmicas grupais e outras técnicas psicológicas, discursam sobre a importância da cooperação e do trabalho em equipe, passam exercícios para, no fim das contas, melhor adaptar os trabalhadores à dinâmica de produção, na sua maximização, alienando-os e explorando-os.
Resumindo: mesmo esses princípios ético-políticos que propomos para a existência de uma Psicologia do Diálogo, quando desprovido de uma noção e um entendimento da complexidade, podem contribuir com a lógica que estamos questionando, se forem usados em prol do Estado e suas instituições. Um indivíduo pode realizar um discurso sobre diálogo e alteridade, negando em sua práxis o exercício desses e rejeitando a participação democrática do outro, e mesmo assim sair com a consciência de ser dialógico e democrático, tal como é o caso do filósofo clínico Lúcio Packter. Em suas aulas de Filosofia Clínica2, Packter evocava discursos de alteridade, da necessidade da compreensão do outro e sua historicidade, no entanto, quando um aluno questionava aspectos de sua teoria, ele agia defensivamente de maneira a-dialógica e anti-dialógica, combatendo tais ideias com tom arrogante, contradizendo, em sua prática interpessoal, o que defendia em sua teoria. Esse tipo de cisão entre pensamento e ação é muito comum no mundo pós-moderno que incentiva, pela individualização das causas e dos problemas, um variado número de propostas. Muitas dessas excludentes entre si.
A Filosofia Clínica3 é um exemplo de uma dessas propostas que surgem para atender as demandas do capitalismo neoliberal, não possuindo uma base ético-crítico-política que considere o seu lugar frente a esse, se centrando, assim como a ciência psicológica tradicional e infelizmente boa parte da psicologia contemporânea, no indivíduo isolado, em sua problemática subjetiva. A proposta da Filosofia Clínica deriva de uma tendência mundial que Pechula (2007) chama de Filosofia Prática. Entre tais propostas constam também as abordagens de Gerd Achenbach, Marc Sautet e Lou Marinoff (PECHULA, 2007).
Segundo Pechula (2007), Gerd Achenbauch teria sido o inaugurador dessa proposta, montando um consultório filosófico na Alemanha em 1981. A autora destaca que Marc Sautet abriu um consultório particular e orientava debates filosóficos no Café des Phares em Paris desde 1992, e que Lou Marinoff oferecia aconselhamento filosófico (além de outros trabalhos) desde o início da década de noventa em Nova York. Essas propostas trazem a ideia da filosofia ser usada para resolução de problemas cotidianos. E como são pensados esses problemas? São pensados como problemas inerentes aos sujeitos e que podem ser resolvidos através de discussões filosóficas em Cafés, de aconselhamento filosófico e das racionalizantes sessões com o filósofo clínico. 
É necessário, no desenvolvimento de uma proposta, pensar nas bases ético-crítico-políticas, sobretudo para não incorrer no erro das já citadas, que surgem para resolver problemas cotidianos capitais não indo além de uma reforma, de uma adaptação do sujeito ao sistema que produz e mantem as desigualdades, coisa que a própria psicologia científica vem fazendo, com a diferença de que o faz com estudos e técnicas mais avançadas - de um ponto de vista acadêmico e institucional - tendo maior engajamento institucional ao redor do mundo.
A psicologia científica, mesmo em seu viés crítico, não consegue ir além de seu viés institucional, seja ele acadêmico ou profissional. A instituição, como órgão sedentário do Estado, sobrevive de sua demanda, e irá consciente ou inconscientemente defender o seu lugar e com isso o mesmo. Jamais irá se opor seriamente. Por isso suas propostas de transformação serão sempre reformistas, buscando salvar o lugar institucional, no qual o discurso é constantemente produzido de maneira a legitimar sua posição sedentária. É parte de uma tendência que não pode ser superada institucionalmente. Nesse sentido, de acordo com Avelino (2007), vale destacar que as instituições são responsáveis por conectar os indivíduos à lógica do poder. Esse autor afirma que no interior de uma instituição o indivíduo deve se dobrar às regras da sua organização e, assim, é dominado por suas finalidades em nome das quais decisões são tomadas em conformidade com a ordem do Estado. Assim, segundo Avelino (2013), as instituições, articulam a existência do indivíduo com a ordem do poder. O autor afirma que atacar as instituições é colocar em questão o próprio poder.
Vale destacar que a instituição opera dentro da lógica e da ordem da legalidade estatal. Avelino (2013) explica que a legalidade não é uma ordem exterior aos indivíduos, a mesma integra a sua própria subjetividade por meio da qual opera e se manifesta. Essa, de acordo com o autor, se instala nos espíritos antes de erguer fortalezas. O autor destaca que o rompimento com a legalidade é um ato de maior importância.
A legalidade permite a desigualdade social, protegendo a sua sistemática que opera através da exploração entre classes. A tendência acrítica da resolução de problemas cotidianos capitais no interior da sociedade capitalista, opera pela lógica da legalidade, e nesse sentido beneficia o sistema que produz e mantem as desigualdades sociais.
E é justamente para não cair nessa tendência que se torna preciso melhor definir as bases ético-crítico-políticas da Psicologia do Diálogo. E quais seriam essas bases? A Psicologia do Diálogo, enquanto crítica da psicologia do discurso pós-moderna, é uma psicologia com base anarquista. O que isso quer dizer? Quer dizer que, partimos do princípio de que não é possível superar as contradições sociais, operando dentro da lógica sedentária do sistema que produz e mantem as desigualdades. Não é possível resolver tal problema no conforto das instituições, nas quais os homens fazem moradas narcísicas, se tornando parte integrante do Estado, o qual buscam defender direta ou indiretamente através da sua função, seja ela qual for. A psicologia, seja a das instituições acadêmicas, seja a das instituições profissionais, irá procurar legitimar e defender o seu lugar, ora através de propostas reformistas no sentido de uma transformação social adaptativa, ora no tratamento individualizante dos ditos “problemas psicológicos”, que tendem reduzir a complexidade das múltiplas determinações.   
Tendo consciência dessa realidade, acreditamos que a Psicologia do Dialogo, que tem como objetos de estudo as relações interpessoais, o diálogo, o discurso, se nutrindo de uma base anarquista, anti-estatal e anti-institucional, pode melhor desenvolver sua compreensão sobre os seus objetos e assim melhor contribuir em ações dialógicas para a libertação da coletividade humana. Acreditamos que é somente pelo diálogo que pode haver o despertar da sensibilidade coletiva, necessária para o real reconhecimento das contradições sociais. O que torna possível pensar em estratégias para  o enfrentamento do Estado e suas instituições.
Não pode haver diálogo onde existe opressão, onde as instituições, como órgãos sedentários do Estado, trabalham de maneira a efetuar a lógica da dominação, da alienação, da exploração. Aí só há espaço para o discurso legitimador que privilegia uma classe em detrimento de outra. Não pode haver diálogo em uma relação autoritarista, uma relação que não permita o questionamento da própria estrutura social. Assim, é necessário pensar e praticar o diálogo libertário que, para além das definições buberianas (2001, 2009), possa criar condições para o enfrentamento do problema da exploração, da desigualdade, da injustiça, da miséria, entre outros, não ficando restrito a ideia e a práxis de um encontro (EU-TU) ilhado na sociedade capitalista neoliberal. 
           
Notas:
1 O presente texto está disponível nesse link:

2 Aqui descrevo parte de uma experiência de uma especialização em Filosofia Clínica.

3 Sobre Filosofia Clínica e sua crítica ver “Crítica aos Fundamentos e Prática da Filosofia Clínica” disponível no link abaixo:

Referências

AVELINO, N. As revoltas de Junho e o anarquismo. Revista Espaço Acadêmico. Ano XVII, 2013.


BUBER, Martin. Eu e Tu. 10 ed.  São Paulo: Cenaturo, 137 p. 2001.


BUBER, Martin.  Do diálogo e do dialógico. São Paulo. Perspectiva, 2009.


PECHULA, M. A. A filosofia e seus usos: crítica e acomodação. 204 p. Tese (Programa de Pós-Graduação em Educação). Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, 2007.


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Considerações para uma ontologia do medo/angustia



Quem não tem medo da vida, não tem medo da morte. Schopenhauer

Neste ensaio, darei continuidade ao trabalho de sistematização filosófica que venho realizando nesse Blog. No texto anterior (1), a partir de uma leitura existencial das origens dos seres, categorizei três importantes conceitos: Vida, Existência e Essência. Esses que buscaram sintetizar dialeticamente algumas noções e aspectos teóricos sobre o naturalismo de Charles Darwin, a ontologia de Schopenhauer, a Psicanálise de Freud e o existencialismo de Nietzsche, Heidegger e Sartre.
Do diálogo com Darwin e Schopenhauer, pude conceituar Vida como: matéria animada que possui leis rígidas, cuja determinação se dá pela Vontade Biológica que, interagindo com o meio ambiente e sua seleção natural, tem como finalidade a conservação de si própria, ou seja, das diversas espécies (vegetais, animais fungos, etc). Essa Vontade Biológica é parte de uma força maior, conceituada no trabalho como Vontade Geral. Essa última, em sua maior parte, permanece indeterminada, devido ao desconhecimento humano de sua epistemologia. O que sabemos dessa força até agora se resume a criatividade artística dos filósofos, cientistas e místicos religiosos.
As ciências -exatas- compreendem a Vontade Geral como uma energia universal cosmológica que pode ser, em parte, apreendida por seus recursos tecnológicos (telescópios, tubos de ensaios, aceleradores de partículas etc), e especulada por suas teorias matemáticas. Essa Vontade Geral é nocional e matematicamente compreendida pelas ciências como o impulso compositor do universo. A filosofia e as ciências humanas, através de seus conceitos, tentam apreender a lógica dessa Vontade Geral também via especulação, se centrando no mundo humano. A mística religiosa, por sua vez, entende essa como manifestação de Deus (es), ser(es) divino(s) que seria(m) o(s) criador(es) do mundo, do universo/cosmo. Em todas essas maneiras de conhecer e de representar o conhecimento está inclusa uma lógica antropocêntrica da qual não se é possível fugir, embora a mística religiosa negue essa proposição.
Qualquer conhecimento, produzido pela subjetividade humana em suas experiências no-mundo-no-tempo-com-os-outros, tem como parâmetro apriorístico uma demanda vital e existencial. Tal demanda tem como meta a conservação da vida e da existência. Da vida em sua conjuntura biológica genérica: a conservação da espécie humana. Da existência, em sua especificidade subjetiva e social: a conservação da subjetividade particular do indivíduo em sua temporalidade atual, e a conservação dos diversos grupos sociais em sua estruturação histórica.
Do diálogo com Freud e a psicanálise, pude conceituar a especificidade humana da vontade de vida schopenhaueriana - a Vontade biológica – compreendida e horizontalizada por Freud no conceito de pulsão (vida e morte). Através desse, Freud buscou representar a estrutura e o funcionamento da vontade de vida, levado ao campo da subjetividade ou personalidade humana, tendo a sexualidade, o inconsciente e a psicopatologia como categorias explicativas. Em Freud, a sexualidade é a lei geral da atividade humana. E essa lei opera segundo o princípio do prazer/desprazer. Freud expande a lente sobre a subjetividade/personalidade humana, e explica suas especificidades.
Do diálogo com o existencialismo de Nietzsche, Heidegger e Sartre, pude apreender a noção de existência em sua particularidade humanista. Embora Nietzsche, em grande parte de sua obra, utilize o termo “vida”, acredito que esse, por adentrar a especificidade da subjetividade humana, pode ser também entendido como existência. Na verdade, o pensamento de Nietzsche, situado numa visão de homem e mundo irracionalista, marca a transição do pessimismo romântico schopenhaueriano para a transvalorização dos valores, edificando o conceito de vontade de poder. Essa transição é mediada por uma cosmovisão naturalista radical, que tem como parâmetro crítico o retorno à natureza, ao instinto criador.
Em Nietzsche, pude compreender que a Vida antecede a existência e essência, complementando a lógica existencialista de Heidegger e Sartre.
Nesse sentido, considero que sim, a existência precede a essência, pois primeiro o homem existe, se descobre e surge no-mundo-no-tempo-como-os-outros para só depois definir criativamente o seu sentido existencial (essência). Porém esse homem é, acima de tudo, um ser vivo que possui um organismo pré-determinado pela natureza bruta que lhe conferiu essa possibilidade. Essa determinação pré-existencial não pode ser pensada e representada em termos de experiência, mas enquanto categoria a priori. A vida representa essa categoria que se faz existência no processo de subjetivação do homem que se dá em um mundo, num tempo com seus semelhantes.
Para compreender integralmente a humanidade e seu processo histórico-existencial, libertando-a dos equívocos, é necessário pensar acerca da natureza e como esta se relaciona com a vida e posteriormente com a existência. Nesse sentido, evoco aqui, novamente, a ideia irracionalista do “retorno à natureza”.
A ideia/noção “retorno à natureza”, oriunda dos filósofos irracionalistas, do qual Rousseau é um dos principais percursores, denunciou um dos principais equívocos do iluminismo e posteriormente do positivismo: a crença na supremacia da razão, enquanto domínio humano. Essa última, sempre ligada ao instinto e a pulsão, não é de modo algum absoluta, tal como acreditavam os iluministas e positivistas. A razão trabalha, num primeiro momento, a serviço da vida, na sua conservação, resolvendo os problemas que ameaçam a sobrevivência do organismo humano particular e sua comunidade circundante. Por exemplo: construir uma casa corresponde a uma demanda vital, pois o homem-sujeito, usando de sua inteligência, a constrói para proteger a si mesmo e os seus dos perigos ambientais. Assim, o que está detrás dessa inteligência/razão é o instinto de sobrevivência, operado pelo medo do aniquilamento.
 Num segundo momento, tendo resolvido a problemática da sobrevivência, a razão passa a trabalhar a favor da existência humana, através da pulsão existencial, produzindo “sentidos” para tamponar o vazio existencial. Esse último, como tenho teorizado, representa um dos principais efeitos da evolução humana: a total “falta” de sentido. Isso é um problema que ameaça a existência, convocando-a a operar na composição do sentido.
O organismo humano que, anteriormente inexistia enquanto ser, no processo de evolução biológica, desenvolve sua pulsão existencial a partir do instinto de sobrevivência. A pulsão existencial produz no homem o vazio, que é uma noção intuitiva de sua situação mortal. Para superar tal condição, o ser humano cria intuitivamente o sentido existencial (essência). Um exemplo de sentido existencial são os arquétipos, contidos em pinturas rupestres, vasos e demais adornos ancestrais. Essas representações simbólicas foram criadas pela intuição humana ancestral para resolver a problemática das origens e finalidades dos seres. Os homens da caverna criaram seus primeiros símbolos para aliviar a angustia, produzida pela pulsão existencial que adquiriu forma em seus imaginários. É justamente o medo de desaparecer enquanto ser que leva o homem ao ato da criação.
Como se percebe: tanto no campo da vida, como no da existência, o medo está presente, dinamizando a atividade biológica e existencial dos seres!
No campo da vida, ele é o mecanismo fundamental da vontade de vida que, como já disse, tem como objetivo a perpetuação orgânica da espécie. O medo biológico é característica dinâmica de todos os animais. Representa o sinal de alerta do organismo diante de situações que podem ameaçá-lo mortalmente. O medo é a defesa natural contra a antecipação da morte. Nesse sentido, pode-se afirmar que o mesmo encontra-se sempre relacionado à morte, sendo medo da morte. O medo é a força motriz da atividade dos seres vivos que se relaciona com o meio ambiente.
No campo da existência, o medo da morte encontra-se relacionado à pulsão existencial que se configura na subjetividade do sujeito particular. Conceituo como angustia, a conversão intuitivo-consciente do medo biológico (medo da morte), levado ao campo da subjetividade. É somente por meio dessa última que o medo adquire um caráter existencial, propriamente dito.
Primeiramente, vem o aparecimento do ser, por meio da evolução bio-ontológica do organismo humano – dos impulsos inconscientes para consciência intuitiva. A partir dessa evolução, o instinto de conservação da espécie transita para a pulsão existencial, se particularizando na também emergente subjetividade. Assim, o medo biológico se converte em angustia, essa que representa o sinal de alerta da existência, tal como o medo representa o sinal de alerta da vida. Esse sinal de alerta, bem desenvolvido conceitualmente pelo filósofo Kierkegaard, move o homem, justamente porque se faz um necessário existencial, assim como o instinto da fome se faz um necessário vital. Representa uma reação intuitiva e pulsional a total falta de sentido da existência.
A angustia, também entendida como medo existencial, ativa a criatividade humana que sintetiza os reflexos perceptivos do mundo externo no imaginário do sujeito, então existente. Essa síntese é externada artisticamente no mundo externo como Arte, compondo assim a essência, a resposta humana contra a ameaça do desaparecimento existencial.
É contra o desaparecimento do ser que trabalha a pulsão existencial, tendo como princípio motor a angustia. Para compreender o processo histórico existencial do homem é necessário compreender a angustia, o medo da morte evoluído ao plano ontológico. E para isso – volto a dizer – é necessário efetuar o retorno à natureza, nunca a separando da existência e suas propriedades ontológicas. Assim, acredito, que podemos efetuar uma busca autêntica pelas raízes das diversas culturas humanas, assumindo um compromisso ético com a verdade que é humana e criativamente construída.                 

Referências bibliográficas
    
DARWIN, C. A origem das espécies. Lelo & Irmão, 2005.

FREUD, S. Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico. Escritos sobre a psicologia do inconsciente, 1. Ed. Imago, 2004.

FREUD, S. Pulsões e destinos da pulsão. Obras Psicológicas de Sigmund Freud, 133-173. Ed. Imago, 2004

FREUD, S. Além do princípio do prazer. Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Ed. Imago, 2004.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis, Ed. Vozes, 2008.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Ed Martin Claret, 2002.

KIERKEGAARD, S. O Desespero Humano Ed. Martin Claret, 2001.

SARTRE. J. P. O Ser e o Nada. Petrópolis. Ed. Vozes, 2007.

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafisica do belo. Ed. Unesco, 1998.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Ed. Contraponto, 2001.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Vida, Existência e Essência: uma leitura existencial das origens



            Neste ensaio, pretendo discutir três categorias conceituais - Vida, Existência e Essência -  no intuito de esclarecer e fundamentar a sistematização filosófica que venho desenvolvendo neste Blog1. Esses conceitos são de extrema importância para compreender o processo histórico-existencial do ser humano.
            Compreendo Vida como "substrato biológico que anima a matéria, lhe conferindo um sistema orgânico o qual nasce, cresce, desenvolve, reproduz e morre. Essa matéria animada possui leis fixas, cuja aplicabilidade se encontra também na matéria inanimada inorgânica. Essa semelhança é explicada na ideia de que a segunda deu origem a primeira. Na verdade, a matéria animada, a vida, é a parte acidental de uma causa maior chamada natureza bruta. Essa última produziu a primeira, num processo de transformação que podemos entender como evolução. A vida, como nos demonstrou Darwin, obedece ao princípio da evolução biológica que ocorre em função da seleção natural. A evolução biológica é o resultado de uma interação entre matéria animada e inanimada. Como parte do grande todo - a natureza bruta - a vida também se transforma, obedecendo as mesmas leis rígidas.
            Essa matéria animada, catalogada em espécies e em organismos, não é independente do seu meio ambiente, possuindo uma relação simbiótica com ele. O organismo individual é o representante da espécie, a especificidade dessa matéria animada. Possui uma temporalidade mais ou menos determinada, o que se entende como tempo de vida. Esse  é sempre um elo de transição e nunca um fim propriamente dito. O fim é o princípio geral: a perpetuação.  Pois o que interessa para a espécie e a vida em-si é a perpetuação dessa matéria animada - assim como o filósofo Schopenhauer bem definiu em sua teoria da vontade. Nesse sentido, pode-se afirmar que a vontade contida em cada indivíduo orgânico é um fragmento da Vontade Biológica que governa irracionalmente todos os seres vivos. E o principal objetivo dessa vontade é a perpetuação de si mesma. É nesse sentido que o organismo individual, portador do plasma biológico, não pode ser um fim, mas um meio, pois o que é evolutivamente conservado não é o indivíduo orgânico, mas a vontade biológica que retroalimenta a si própria no interior de uma lógica maior: a Vontade Geral. Essa formula é válida para toda a matéria animada e inanimada que conhecemos empiricamente e que especulamos ora pela lógica matemática, ora pela lógica conceitual.  
            Passarei agora para uma análise mais particular: a do ser humano. Para isso permitam-me que busque referência em dois grandes teóricos da natureza humana: Arthur Schopenhauer e Sigmund Freud.  
            Schopenhauer chamou de vontade de vida a manifestação dessa vontade biológica que é encontrada em todos os seres vivos. Freud, possivelmente sob a influência desse filósofo, usou o conceito de pulsão de vida para referir-se ao impulso da ordem da sexualidade, guiado pelo principio do prazer, que motiva o individuo " humano" rumo a satisfação parcial. É interessante destacar que o conceito de vontade de vida de Schopenhauer adquire uma significação genérica, referindo-se praticamente a todo reino orgânico, enquanto que o conceito de pulsão de vida em Freud refere-se particularmente ao ser humano. A pulsão de vida é a humanização da vontade geral, da qual a sexualidade é parcializada, extirpando-se do fim gerador da vontade: a perpetuação da espécie. Mas o que, realmente, marca essa transição, especificação ou transformação da vontade biológica para/em a pulsão sexual, guiada pelo princípio do prazer? O aparecimento existencial ou da consciência do homem.
            No texto "Pulsão existencial e sua meta criativa", comecei a especular esta ideia. Nele introduzi o conceito de pulsão existencial, buscando representar esse elo de transição entre vida e existência que possivelmente ocorreu no período da pré-história. A pulsão existencial foi o resultado do processo de evolução do cérebro humano e suas estruturas, envolvendo ai o desenvolvimento do pensamento, memória e da linguagem. Todo esse processo está intimamente ligado às condições ambientais e às condições sociais que não podem ser tratadas isoladamente.
            A pulsão existencial representa a transição evolutiva do instinto biológico. O homem que anteriormente inexistia enquanto ser, angustiado por essa pulsão existencial, começa a ter pequenos feixes de consciência que apreendem a noção de finitude do seu próprio ser, desembocando assim no vazio existencial. Com essa consciência, há uma defesa do organismo, próprio de uma ligação com o instinto de sobrevivência, que o impulsiona a preencher esse vazio. Esse preenchimento é realizado graças a sua capacidade de combinar imagens, reflexos perceptivos do mundo externo, armazenadas na memória, que também se desenvolve no processo evolutivo. Á essa combinação de imagens simples em imagens complexas, chamei de imaginação. E ao processo pelo qual isso foi possível de criatividade. Até então estamos falando na esfera do mundo interno, da subjetividade. Porém, a pulsão existencial, assim como o alimento que se digere no estômago de um animal, precisava ser eliminada ou expulsa, saindo do interno (subjetividade) para o externo (objetividade). O imaginário é o ambiente onde a pulsão existencial adquire sua forma, porém é na expressão que ela pode, de fato, atingir sua meta pulsional. Por essa expressão o homem-sujeito, se interconecta com o mundo material de maneira a transformá-lo em virtude de sua forma subjetiva (antropomorfismo). A partir daí temos Arte, que surge tão-somente para fechar o ciclo existencial do homem, aliviando a pulsão existencial e produzindo um sentido (essência). Em resumo, a arte surge para aliviar a necessidade existencial do homem.
            As obras de artes são uma reposta criativa do organismo humano à angustia, produzida pela pulsão existencial. Elas são resultado da relação evolutiva Vida-Existência e Essência. E em tempos pré-históricos, elas tiveram um papel essencial para a humanidade, pois preencheram as lacunas do vazio existencial, uma das primeiras reações do aparecimento existencial dos homens. O medo biológico é a primeira atividade do ser vivo ao se deparar com o mundo que, por sua vez, se revela perigoso e ameaçador. Imaginem a sensação de um homem pré-histórico que se depara com os primeiros impulsos existenciais, o intervalo que o separa dos instintos biológicos. Qual a sensação do homem ao se deparar com a ausência, o nada, o niilismo? Possivelmente. ele se aterroriza, se amedronta, em proporção semelhante ao fato de encontrar um animal, predador de sua espécie. Trata-se de uma sensação que o impulsiona a preencher esse vazio existencial, produzindo um sentido (essência) para sua emergente existência. A vontade de vida só se transforma em pulsão de vida graças a pulsão existencial. Nesse sentido, tenho uma forte e estrutural discordância com Freud: a civilização não se inicia com a repressão do princípio do prazer, mas com a elaboração criativa de sua pulsão existencial. O primeiro grande conflito do homo sapiens foi existencial, somente depois ele se torna sexual - no sentido atribuído por Freud. Pois se trata da angustia existencial, a conversão evolutiva do medo, a pulsão de autoconservação freudiana. Somente depois de superar a angustia, se é possível falar em prazer, em sexualidade. Bem, mas creio que essa questão ficará para outra discussão. Por hora me contento em apresentar as relações entre vida, existência e essência.
            Para terminar, gostaria de melhor conceituar as três categorias conceituais apresentadas. Oriunda da matéria inanimada,  a vida segue a lógica da perpetuação de si mesma, tendo os organismos como hospedeiros. É inconsciente e irracional quando pensada via consciência e razão humana. Nos animais e demais seres vivos, ela se configura em uma estrutura-função mecânica cuja determinação é rígida, variando apenas com as mudanças ambientais e a passagem do tempo (milhões de anos). Vontade de vida, conceituado por Schopenhauer, é o melhor nome para esse processo.
            Já a existência - como tenho pensado e demonstrado -  é uma categoria que só se aplica plenamente ao ser humano. Os animais e demais seres vivos vivem, mas não existem por si próprios, isto é, dependem da percepção consciente do homem para existirem. Nesse sentido, eles vivem para a natureza e existem para a consciência humana. Já a existência pode ser definida como um estado demasiado humano, cuja duração encontra-se intimamente ligada a vida (tempo de vida). Ela é uma constante, presentificada pela consciência do sujeito que vive no-mundo-no-tempo-com-os-outros-para-a-morte. Enquanto que a vida é um conceito mais genérico se referindo à matéria animada como um todo, existência é um conceito mais específico, que se refere apenas ao homem, a sua consciência. Ela representa o espaço entre o nascimento e a morte que se configura na subjetividade de um sujeito particular. Trata-se de um estado sempre presente que estabelece, via consciência, um diálogo/relação com o passado (memória) e com o futuro (desejo). É a partir da percepção nocional da existência como um estado finito que o homem entra em contato com o vazio, o nada, sendo impulsionado a recorrer a sua imaginação e com essa, posteriormente, a exercer a sua criatividade para resolução dessa problemática.
            A essência ou sentido existencial representa o resultado ou arte final desse processo. Trata-se de uma produção antropomórfica que dá conteúdo ao vazio, significando-o. Longe de ser uma descrição ou reprodução objetiva da natureza bruta, a essência representa a subjetivação humana da última que recria a realidade a partir de uma demanda existencial. As necessidades existenciais constituem as condições a priori da essência: "A existência precede a essência" Jean-Paul Sartre." Mas como apresentamos nesse ensaio a vida precede a existência e constitui, na ordem evolutiva, o seu estado primitivo.     
            Ao processo de criação da essência, motivado pela pulsão existencial, dei  o nome  de Áperion ou princípio artístico, processo que marca a entrada da subjetividade e criatividade humana na construção do mundo percebido. Como desenvolvi nos ensaios passados, tendo sua origem pré-histórica, esse processo foi integralmente intuitivo havendo uma miscigenação entre mundo interno e mundo externo, ou seja, imaginação e fato. A consciência intuitiva dos homens primitivos não foi capaz de apreender a participação subjetiva dos homens que estavam "existencializando" esse processo, centralizado-se no fato externo (criador). O fato externo é alterado pela imaginação que, seguindo a lógica da pulsão existencial, cria uma essência subjetiva que é entendida pelo humano como criadora.  Tal processo não pôde ser desvelado e conscientizado pelos humanos que estavam protagonizando o mesmo, gerando assim a contradição criatura-criador. Essa se manteve cristalizada na história cultural dos homens e, não questionada, persiste nos grandes mitos, superstições, religiões e ideologias da contemporaneidade.
            Bem, por hoje é isso! Espero que esse ensaio tenha iluminado um pouco essas categorias tão complexas. No mais, esse conceitos precisam ser melhor teorizados e  melhor ajustados ao corpo da teoria, mas nos ajudam a compreender muitas questões e problematizar outras sobre o nosso processo histórico-existencial.



Notas:


Referências bibliográficas:


DARWIN, C.(2005).. A origem das espécies. Lelo & Irmão.

FREUD, S. (2004). Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico. Escritos sobre a psicologia do inconsciente, 1. Ed. Imago
 
FREUD, S. (1915/2004). Pulsões e destinos da pulsão. Obras Psicológicas de Sigmund Freud, 133-173. Ed. Imago.

FREUD, S. Além do princípio do prazer. Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Ed. Imago.

SHOPENHAUER, Arthur. Metafisica do belo. Ed. Unesco.

SHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Ed. Contraponto.


            

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Somente seu olhar (por Alvinan Magno)



Olho nos seus olhos, vejo um belo futuro
onde quero estar
Projeto-me alegremente nesse gesto puro
que é o seu olhar

E minha visão se encanta e na magia
re-começo a acreditar
Se a felicidade existe, recorro poesia
pra te enchergar

Eu vejo sempre esperança nesse brilho eterno
que é o seu olhar
Me prometendo o paraíso, o ultero materno
quero retornar

E re-viver momentos lindos, e na inocência
poder acreditar
E se a felicidade existe, nesta experiência
eu vou mergulhar 
  
Ah, se palavras pudessem dizer
o que eu sinto por você
sem distorcer esse momento
Ah, se a lingua pudesse transmitir
o que você me faz sentir
a beleza desse sentimento

Ah: somente  o olhar
pode expressar: somente seu olhar (2x)


 Obs: Música dedicada ao amor da minha vida, Carla Berti Bonesso.












segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Way of Life (por Alvinan Magno)

Por detrás desse discurso
Uma pseudo-liberdade
Faz do mundo um concurso
E de sua vontade, autoridade!

Sobrevivi de uma mentira
Pra se manter no poder
Sobre o contrário lança a ira
Maior terror não se pode ter!

E vive uma ideologia como se fosse verdade
E lança sua paranóia doentia sobre a humanidade
Controle e condicionamento são suas virtudes
Invasão, corrupção, destruição: suas atitudes

Terrorismo psicológico
Mal estar social
Comportamento xenofóbico
invasão, invasão cultural

Globalização antidialógica!
Liberdade de expressão?
Democracia autocrática!?
Que contradição!!

E nós seguimos seu "Way of  Life" como meros espectadores
E eles explodem nosso país e aplaudimos seus "atores"
E nós seguimos seu "Way of  Life" como meros espectadores
E eles explodem nosso país e aplaudimos... (bate palma)
Seus "autores"


Letra e melodia por Alvinan Magno

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Para uma Psicologia do Diálogo (Por Alvinan Magno)


            Este ensaio sintetiza os pontos essenciais de um encontro ocorrido no dia 24 de outubro de 2014 na faculdade Anhanguera de Anápolis. O tema era "Para uma psicologia do diálogo". Tema que, ao longo dos últimos anos, tem ocupado os meus estudos, reflexões, escritos, práticas psicoterápicas e inter-relacionais. Antes de iniciar a síntese sobre o encontro mencionado, gostaria de agradecer a algumas pessoas, e retratar um pouco da minha experiência.
            Gostaria de agradecer a Péricles Ferreira, filósofo, tatuador e escritor autodidata, que através de seus encontros filosóficos me apresentou uma nova maneira de experienciar as relações humanas. Nesses encontros, eu pude compreender que filosofia não é somente uma atividade individual, embora se inicie no pensamento do sujeito diante das dúvidas e questões existenciais. Pude compreender que a realização filosófica se efetiva na dialogicidade, no compartilhamento de ideias e sentimentos expressos, que se dão durante o encontro. Por meio destes encontros, eu "encontrava" uma nova maneira de me encontrar com os homens, descobrindo a importância do "nós" e da humanização dele oriunda. Assim, surgiu o meu interesse pelo estudo das relações humanas, do encontro...
            Agradeço a professora Janaína S. Oliveira, de quem tive a oportunidade de ser seu aluno. Com ela, pude aprender muito sobre relações humanas, dinâmicas de grupos, psicologia sócio-histórica entre outras. Suas aulas eram sempre um convite ao diálogo e a experiência grupal humanizadora, da qual era impossível não se emocionar. A professora Janaína, devo o meu profundo interesse pelas relações interpessoais.
            Gostaria de agradecer também a Luiz Eduardo Rosa Silva pela participação nos grupos de estudos e pela possibilidade de mediar alguns diálogos após a mostra de filmes no cine clube Xícara da Silva, atividade que faço com muito prazer, pois adoro a sétima arte, tanto do ponto de vista contemplativo, como criativo. Pude apreender muito com ele, e dialogar importantes questões sobre arte, filosofia, ciência política...  Não poderia de deixar de agradecer ao meu amigo e parceiro de composição, o músico César Franklin. Com ele, tive a oportunidade de realizar vários projetos artísticos, e descobrir que dialogar é um ato de amizade.
            Daí por diante tive a oportunidade de participar como mediador de vários encontros, psicoterápicos, de estudos, ou ambos. Afinal, quando o encontro atinge um elevado nível de reciprocidade, no qual os membros se sentem aceitos mutuamente, tal como constatou Rogers, é inevitável não haver um processo psicoterapêutico. O senhor Raimundo, um integrante de um destes grupos de seus 55 anos, sempre me falava após o grupo algo neste sentido: "Alvinan, eu sempre saio dos grupos renovado, é um experiência muito boa, eu me sinto livre pra falar o que penso, pra dizer o que sinto". E isto, estudando um texto "Mal estar na civilização" de Freud. Mas, pensem bem, caros leitores, qual a utilidade de um estudo que não ultrapassa o campo da teoria, se tornando vivencial? Como falar do mal estar na civilização, se não consigo me localizar neste tema, se ele me é indiferente?
            Antes do referido encontro, eu havia me lançado numa intensa e angustiante reflexão: Seria a psicologia, ciência que ao longo da história serviu as instituições, produzindo discursos para sua legitimação, capaz de libertar o homem do seu legado ideológico? Seria esta ciência que sempre se acoplou as demanda do capitalismo, as demandas de um individuo isolado, capaz de inter-conectar "humanamente" os homens? Existe, realmente a possibilidade, da psicologia ser uma precursora "legítima" do desenvolvimento humano dos homens? Estas e demais questões me fizeram formular alguns caminhos para trilhar, caminhos que não poderia formular só sozinho, pois, afinal, não iria trilhá-los sozinho.
            Compreendendo esta máxima, cheguei a conclusão que deveria falar sobre diálogo no e pelo diálogo, ou seja, o tema "diálogo" só poderia ser autenticamente compreendido se vivenciado em uma relação onde a dialogicidade estivesse presente. Não poderia fazer um discurso sobre diálogo, seria uma contradição evidente, já que considero o discurso como o principal oponente do diálogo. Foucault para falar de discurso, em sua "A ordem do discurso", recorreu ao discurso, enquanto meio de transmissão da sua temática, justificando-o dentro de teoria. Eu, seguindo essa lógica, mas questionando a instrumentalização do discurso, propus para os envolvidos do encontro uma experiência dialógica, que diferente de uma palestra discursiva, tem o conteúdo como um mero elemento facilitador, se centrando na relação. O que importa numa relação dialógica é a participação ativa e compartilhada dos envolvidos no encontro que, muitas das vezes, pode definir e intervir na temática, transformando radicalmente os pontos de vista. Nesse sentido, o "palestrante" se torna um mediador ou facilitador cuja tarefa é organizar consensualmente a atividade dialógica, direcionando esta através dos seus temas geradores.
            Tendo a relação dialógica como referência, eu trouxe as seguintes questões para dialogar com grupo: Mas, afinal, o que é diálogo? Qual a diferença entre discurso e diálogo? Qual a relação entre diálogo e psicologia? Estas questões foram apresentadas uma após a outra, depois de um compartilhamento entre ambas. Como era de se esperar de uma relação dialógica, todos os envolvidos deram a sua opinião, contribuindo pra o desvelar  das questões. Assim, foi possível a nós formular nossas próprias respostas, algumas muito próximas do pensamento do filósofo do diálogo Martin Buber e do pedagogo e teórico brasileiro Paulo Freire, que eu havia usado como referências. As respostas eram próximas a estes autores, pois iam numa mesma linha de pensamento, mas nunca iguais, pois o que dialogávamos naquele encontro era uma presentificação do nosso momento histórico-social que se realizava graças a interação criativa das nossas subjetividades, que produzia uma nova significação. Em resumo, estávamos ali produzindo nossas próprias concepções sobre diálogo e sua relação com a psicologia.
           Nesse sentido, caros leitores, chegamos a algumas proposições consensuais, respondendo a primeira questão. Tentarei transmiti-las a vocês, respeitando  e traduzindo a vivência do encontro.

  • ·         Diálogo é uma relação entre dois seres, que se faz entre um Eu e um Tu.
  • ·         Trata-se de uma relação empática, cuja a realização se dá por meio de trocas recíprocas.
  • ·         Representa a possibilidade de uma real comunicação por meio da aceitação do outro, e com esta a aceitação de si mesmo.
  • ·         Acontece na interface de um encontro: sua possibilidade ontológica se dá pelo encontro das extremidades, sendo inter-subjetivo.
  • ·         É uma coexistência, ativa, criativa e compartilhada, onde os evolvidos, tendo o homem e o mundo circundante como referência, se beneficiam mutuamente, através de relação consensual. 
  • ·          Deve ser des-sexualizado, ou seja, desprovido de interesses sexuais, de um ponto de vista psicanalítico.
  • ·         Para haver a dialogicidade, é necessário que se fale de uma relação entre sujeito, nunca  entre "objetos". No diálogo o sujeito está para um sujeito, e não para objetos. 
  • ·         Embora se possa falar de diálogo no plano do homem com a natureza (animais, plantas) e do homem com os seres espirituais - tal como coloca Buber - é somente no encontro humano que se realiza a autêntica ação dialógica. Nela, o homem recebe e endereça seu TU.

            Por meio de uma comunicação compartilhada, encontramos uma nova significação para esta simples palavra (diálogo), que se objetivou naquele encontro por meio da nossa volição, engajada neste tema. Cada individuo, ali presente, possuía uma historicidade subjetiva que se integrou com as dos demais, numa historização coletiva compartilhada. Assim, pode-se dizer que nossas historicidades encontraram um elo dialógico e, ao menos naquele momento, puderam se realizar, mais do que uma simples aquisição intelectual, foi uma vivência empática humanizadora. Nesta atividade, nós atribuímos a nossa coexistência experiencial aos conceitos, termos e temas, que foram apenas meros instrumentos, ou como pensava Heidegger, utensílios. Utensílios usados, neste caso, para refletir e traduzir a nossa experiência dialógica...
            Se eu tivesse optado por uma prática discursiva (palestra, aula expositiva), jamais atingiria esse nível de reciprocidade, pois o que estaria sendo estimulado, na melhor das intenções, seriam conteúdos, e não uma vivência didática compartilhada.  E para que, vocês compreendam melhor esta crítica que estabeleci ao discurso ou a discursividade, creio que seja necessário passar para o próximo nível do encontro. Estabeleci um quadro apontando algumas diferenças entre dialogicidade e discursividade, e estas aumentaram após a experiência dialógica com o grupo.


Enfoques da Discursividade
Enfoques da Dialogicidade
Comunicação monológica
Comunicação dialógica
Transferência narcísica
Transferência empática
 Explora o EU-ISSO
Experiencia o EU-TU
Valorização do objeto: Fetichismo 
Valorização do ser humano: humanismo.
Relações embasadas em interesses sexuais: hedonismo.
Relações embasadas no sentimento de amor a humanidade: altruísmo.
O foco é o individuo
O foco é a relação
Pressupõe  que o poder deve ser delegado a uma figura de autoridade
Pressupõe  que o poder pode ser compartilhado pela coletividade
Tendência a alienação e a dominação, entre o emissor e receptor
Tendência  a emancipação e libertação da coletividade humana
Concepção a-histórica da realidade baseada em um presente fragmentado  e contraditório(pós-modernidade).
Concepção histórica, baseada na possibilidade de integrar a realidade, superando as contradições sociais.
Produz condições para a competição.
Produz condições para a cooperação.

            

























            
            Passarei agora para uma análise mais detalhada deste quadro comparativo. Como é possível perceber no mesmo, existe uma enorme diferença entre os enfoques da discursividade e os da dialogicidade. Uma diferença profundamente antagônica a nível de tese e antítese. Enquanto que a primeira representa o espírito das relações inter-pessoais da nossa época neoliberal, a segunda representa uma possibilidade de ser, que só pode se tornar real como crítica da primeira. Trata-se de uma postura revolucionária.
            Na discursividade, a atividade se realiza tendo como padrão uma comunicação monológica que se resume em um emissor que transfere narcisticamente suas ideias e sentimentos, tendo em mente que seu (s) receptor (es) os acate (m) de maneira a-dialógica e a-dialética. Ele, no ato do discurso, se faz uma autoridade, cujo poder lhe foi delegado por um sistema, e cuja intenção é transmitir uma mensagem prontificada, estabelecendo, assim, relações de dominação, manipulação e alienação. Os sujeitos receptores são postos como Eu-Isso, meros objetos, no qual o discursante realiza seu fetiche Oral. A discursividade ou atividade do discurso é, como pudemos vivenciar, a forma de comunicação (talvez nem poderia ser chamada de comunicação) mais abrangente e recorrente do mundo contemporâneo. Pode-se dizer que sua existência, enquanto atividade humana, representa e traduz a via expressiva das contradições humanas da contemporaneidade, conservadas pelo sistema capitalista. 
           Ao contrário, na dialogicidade, a atividade se realiza numa comunicação entre um Eu e um Tu no seio de uma relação dual engajada, cuja aceitação do outro é sua condição de existência. Nela, a transferência ocorre em um nível empático, pois os envolvidos sentem uns aos outros, não como objetos de suas próprias projeções narcísicas, mas como sujeitos humanos que necessitam uns dos outros, para se realizarem como tal. Na dialogicidade, a atividade comunicativa é nutrida pelo sentimento de amor, mas não se trata aqui de um amor libidinal, narcísico-sexual, como supõe a psicanálise. Trata-se de um amor humanista, amor a humanidade, e para não distanciarmos totalmente do conhecimento psicanalítico: trata-se de uma "sublimação". Ou seja: uma canalização e/ou superação dos impulsos narcísico-sexuais na relação inter-pessoal pela consideração existencial do outro enquanto pessoa humana.  O sentimento de amor a humanidade é a condição prévia para a empatia...
         Embora existam inúmeras diferenças e relações entre discurso e diálogo, das quais esse encontro foi capaz de apontar algumas, creio que estes, devido a sua vastidão, sejam  para um próximo encontro. Falta relatar a vocês, caros leitores, a última parte do presente encontro. Depois do compartilhamento das diferenças entre diálogo e discurso, eu trouxe a terceira questão, almejando traçar uma relação entre psicologia e diálogo: Dentro de tudo isso que foi aqui discutido, a psicologia, no decorrer de sua curta história, tem se reportado mais a discursividade ou a dialogicidade?  Ela tem buscado dialogar com os homens, ou tem se afastado deste compromisso humano?
            E a reposta por parte de todos os envolvidos foi: a discursividade... Não, a psicologia tem se afastado deste compromisso humano. Concordamos que, ao longo de sua existência, a psicologia têm se acoplado as demandas do capitalismo e do neo-liberalismo, se fechando ora numa psicologia individual patologizante que responsabiliza o sujeito por sua condição, ora numa psicologia coletiva (das massas), discursiva e alienante que busca resolver os problemas sociais pela adaptação comportamental  as contingências dominantes; Ambas as psicologias, desconsideram a história e os fatores sociais, e com isso, evidentemente, negam a dialogicidade e a possibilidade da participação democrática dos homens na construção do conhecimento psíquico. Ao longo dos anos, a psicologia tem sido usada como uma ferramenta discursiva para alienar os homens, isto é, para modelá-los de acordo com as fôrmas do neoliberalismo. Longe de libertá-los, ela tem estimulados a produção de uma discursividade prescritiva que estimula a objetificação das relações, a individualização do sujeito, fragmentando-o de si mesmo, dos outros e do mundo concreto.
            E como seria então esta tal psicologia do diálogo que estamos aqui defendendo, quais seriam suas características? Bem, seriam totalmente inversas ao da psicologia do discurso que, possivelmente, se desenvolve na"pós-modernidade". A psicologia do diálogo só pode se reconhecer como crítica da psicologia do discurso. É pela crítica que ela encontra a sua razão de existência, podendo se legitimar autenticamente enquanto prática humanista. Somente assumindo os enfoques da dialogicidade que a psicologia pode se libertar da discursividade, característica central do mundo "pós-moderno". E quais seriam as condições prévias para implementação desta tal psicologia a nível prático? Formulei antes e a após o encontro, algumas proposições que acredito serem necessárias para que essa psicologia seja possível. Estas proposições, são, antes de tudo, proposições éticas. Para que haja uma psicologia do diálogo é necessário:

     Amor e compromisso a humanidade (humanismo), acima de tudo.
     Humildade para aceitação do outro.
    Respeito as diferenças individuais e culturais.
   Capacidade para uma escuta empática e dialógica.
   Disposição para o engajamento humano em projetos coletivos.
  Coragem para se opor ao individualismo discursivo anti-dialógico, próprio do sistema capitalista neoliberal.

            Acho que, em síntese, é isso, caros leitores. Espero que tenha conseguido transmitir a síntese deste encontro que pra mim foi tão rico e importante. A partir dele, pude ampliar minhas noções e pensar, por meio da prática dialógica, numa psicologia que pode ser a esperança para os nossos tempos. Uma psicologia que adentrasse nos principais problemas do ser humano contemporâneo, que aqui coloco como problemas de natureza a-dialógica e anti-dialógica. Posso estar sendo utópico, mas eu realmente acredito que estas ideias e estes sentimentos presentes nestes textos, possam ser mais do que meras expressões. Acredito que estas ideias, estes sentimentos, são ensaios que podem se cumprir renovadamente em continuas ações. Necessitam ser aperfeiçoados a luz de uma epistemologia crítica e de uma ontologia criativa. Mas isso só poderá acontecer com a experiência dialógica, propriamente dita, que aqui descrevi um pequeno, porém, significativo fragmento.
   

REFERÊNCIAS

BUBER, Martin. Eu e Tu. 10 ed.  São Paulo: Cenaturo, 137 p. 2001.

BUBER, Martin.  Do diálogo e do dialógico. São Paulo. Perspectiva, 2009.

CATÃO, Alvinan. Psicanálise, Fenomenologia e Existencialismo – um possível diálogo na construção de uma nova abordagem. Goiânia, Kelps, 2014.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, 20a ed Edições Loyola, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de janeiro, 54 ed., paz e terra, 2013.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21). 1996.