Algum tempo atrás
escrevi um ensaio, disponível nesse blog1, sobre as possibilidades
de concepção de uma Psicologia do Diálogo. A partir da minha experiência
teórica e prática com grupos, pensando as relações interpessoais, propus
algumas definições de diálogo e problematizei como a psicologia, ciência
burguesa que trabalhou e ainda trabalha para o capitalismo, o Estado e suas
instituições, poderia contribuir para o desenvolvimento humano para além das
ideologias.
Em tal ensaio, descrevi
algumas proposições ético-políticas iniciais para a concepção dessa Psicologia
do Diálogo, após discutir os conceitos de diálogo, discurso, dialogicidade e
discursividade. Essa psicologia,
ontologicamente, se revelou crítica da psicologia do discurso, que se
desenvolve na pós-modernidade, legitimando a individualidade em detrimento da
coletividade e contribuindo, do ponto de vista das relações humanas, para a
perpetuação da lógica do sistema que produz e mantem as desigualdades. Essas
proposições são:
- · Amor e compromisso à humanidade (humanismo), acima de tudo.
- · Humildade para aceitação do outro.
- · Respeito às diferenças individuais e culturais.
- · Capacidade para uma escuta empática e dialógica.
- · Disposição para o engajamento humano em projetos coletivos.
- · Coragem para se opor ao individualismo discursivo a-dialógico e anti-dialógico, próprio do sistema capitalista neoliberal.
Embora, dentre as proposições para a existência da Psicologia do Diálogo, tenha proposto o “humanismo”,
é importante não confundir com o humanismo tradicional (cristão; renascentista;
positivista) - esse que a psicologia do discurso também se utiliza de seus
aspectos ideológicos para a legitimação do sistema que produz e mantem as
desigualdades sociais. Basta olharmos pra a história do movimento humanista
para perceber o quanto esse serviu na construção de discursos para
legitimar as práticas burguesas, constituindo as bases de uma racionalidade
elitista que justifica a dominação humana, permitindo a segregação e as
desigualdades sociais. Humanismo aqui também não significa reforçar o
narcisismo humano, colocando o mesmo no centro do mundo, como ideologicamente
os nossos burgueses intelectuais pensaram e escreveram combatendo os valores da
nobreza conservadora, mas reconhecer enquanto humana aquilo que é de
competência e responsabilidade do homem: o mundo humano. Reconhecer o mundo
enquanto concreto para além das representações encantadas e ideológicas.
E quanto à questão do respeito às diferenças individuais e culturais? É possível falar em respeito em uma sociedade de classes, no qual a
injustiça está em sua lógica, na forma como está organizada? Bem, devemos ter
cuidado ao problematizar essa questão. Se olharmos de perto, perceberemos
que a ideologia do respeito às diferenças também contribui para o sistema que
produz e mantem as desigualdades. Essa é, em parte, produzida pela dinâmica do
capitalismo neoliberal. Tal ideologia é usada para legitimar e justificar as
diferenças entre classes sociais, por meio de discursos, como por exemplo, os
da meritocracia que buscam justificar a ascensão social e a existência da
sociedade de classes.
Uma diferença
primordial e concreta que organiza esse sistema pode ser definida na categoria: classe -dominante e dominada. A classe dominante é composta por aqueles que detêm
os meios de produção e o capital. A classe dominada é composta por aqueles que
vendem a sua força de trabalho para receber uma pequena fatia dessa produção. Nesse
tipo de organização, respeitar significa aceitar o sistema tal como ele está
estruturado, as relações de dominação entre classe dominada e dominante;
significa obedecer à lei, curvar-se diante da autoridade estatal; significa
participar da lógica. E então?
Quando falamos em
diferenças individuais, implica em considerar a subjetividade do indivíduo, as
características biológicas, psicológicas e sociais que definem uma pessoa, que
está em um mundo, em uma época, que interage com seus semelhantes em uma sociedade
marcada pela lógica da dominação, da exploração e da desigualdade. No que compete às
diferenças culturais, entendemos as múltiplas determinações biopsicossociais
que definem certa organização civilizatória. Uma organização civilizatória se
difere de outra por um conjunto de características secundárias, mas se assemelham
na sua estrutura, essa constituída e organizada pela presença de um organismo
estatal.
Em termos concretos, respeitar
as diferenças individuais e culturais significa compreender a pessoa e a
cultura em suas múltiplas determinações. Significa compreender o seu discurso,
o que há por detrás. Respeitar, nessa perspectiva, não significa aceitar,
tampouco concordar com determinados discursos, ou seja, com a tentativa de
legitimação por parte de seu lugar subjetivo e/ou social. Respeitar significa
questionar: entender o processo da pessoa e da cultura, seus problemas, suas
contradições. O respeito, propriamente dito, nesse sentido, só pode ser pensado
e realizado por meio de uma ética libertária que tem a coletividade como
objeto.
Quando falamos de
“disposição para projetos coletivos”, nos referimos a projetos que buscam,
através da formação de grupos, proporcionar e/ou criar condições para o
desenvolvimento de uma consciência libertária frente às contradições sociais do
sistema que produz e mantem as desigualdades. Trata-se de projetos cuja
finalidade é o enfrentamento dos valores capitalistas neoliberais, propondo
atividades cooperativas que os contraponha. A greve, o boicote, a manifestação
contra a violência estatal representam formas legítimas de engajamento em
projetos coletivos, pois envolvem não somente a discussão sobre a opressão do Estado,
mas uma ação coletiva cujo sentido é atacar esse tipo de organização social.
Nessa atual fase do
neoliberalismo, é preciso ter cuidado mesmo com a noção de projetos coletivos.
A apropriação da ideia de projeto coletivo, da cooperação é usada a favor do
capital como acontecem nas diversas instituições, dentre as quais as empresas.
Nessas últimas, o coaching e o psicólogo organizacional realizam dinâmicas
grupais e outras técnicas psicológicas, discursam sobre a importância da
cooperação e do trabalho em equipe, passam exercícios para, no fim das contas,
melhor adaptar os trabalhadores à dinâmica de produção, na sua maximização,
alienando-os e explorando-os.
Resumindo:
mesmo esses princípios ético-políticos que propomos para a existência de uma
Psicologia do Diálogo, quando desprovido de uma noção e um entendimento da complexidade,
podem contribuir com a lógica que estamos questionando, se forem usados em prol
do Estado e suas instituições. Um indivíduo pode realizar um discurso sobre
diálogo e alteridade, negando em sua práxis o exercício desses e rejeitando a
participação democrática do outro, e mesmo assim sair com a consciência de ser
dialógico e democrático, tal como é o caso do filósofo clínico Lúcio Packter. Em
suas aulas de Filosofia Clínica2, Packter evocava discursos de
alteridade, da necessidade da compreensão do outro e sua historicidade, no
entanto, quando um aluno questionava aspectos de sua teoria, ele agia defensivamente
de maneira a-dialógica e anti-dialógica, combatendo tais ideias com tom
arrogante, contradizendo, em sua prática interpessoal, o que defendia em sua
teoria. Esse tipo de cisão entre pensamento e ação é muito comum no mundo
pós-moderno que incentiva, pela individualização das causas e dos problemas, um
variado número de propostas. Muitas dessas excludentes entre si.
A Filosofia Clínica3
é um exemplo de uma dessas propostas que surgem para atender as demandas do
capitalismo neoliberal, não possuindo uma base ético-crítico-política que considere o
seu lugar frente a esse, se centrando, assim como a ciência psicológica
tradicional e infelizmente boa parte da psicologia contemporânea, no indivíduo
isolado, em sua problemática subjetiva. A proposta da Filosofia Clínica deriva
de uma tendência mundial que Pechula (2007) chama de Filosofia Prática. Entre
tais propostas constam também as abordagens de Gerd Achenbach, Marc Sautet e Lou
Marinoff (PECHULA, 2007).
Segundo Pechula (2007),
Gerd Achenbauch teria sido o inaugurador dessa proposta, montando um
consultório filosófico na Alemanha em 1981. A autora destaca que Marc Sautet
abriu um consultório particular e orientava debates filosóficos no Café des
Phares em Paris desde 1992, e que Lou Marinoff oferecia aconselhamento
filosófico (além de outros trabalhos) desde o início da década de noventa em
Nova York. Essas propostas trazem a ideia da filosofia ser usada para resolução
de problemas cotidianos. E como são pensados esses problemas? São pensados como
problemas inerentes aos sujeitos e que podem ser resolvidos através de
discussões filosóficas em Cafés, de aconselhamento filosófico e das
racionalizantes sessões com o filósofo clínico.
É necessário, no
desenvolvimento de uma proposta, pensar nas bases ético-crítico-políticas,
sobretudo para não incorrer no erro das já citadas, que surgem para resolver
problemas cotidianos capitais não indo além de uma reforma, de uma adaptação do
sujeito ao sistema que produz e mantem as desigualdades, coisa que a própria
psicologia científica vem fazendo, com a diferença de que o faz com estudos e
técnicas mais avançadas - de um ponto de vista acadêmico e institucional -
tendo maior engajamento institucional ao redor do mundo.
A psicologia
científica, mesmo em seu viés crítico, não consegue ir além de seu viés
institucional, seja ele acadêmico ou profissional. A instituição, como órgão sedentário
do Estado, sobrevive de sua demanda, e irá consciente ou inconscientemente
defender o seu lugar e com isso o mesmo. Jamais irá se opor seriamente. Por
isso suas propostas de transformação serão sempre reformistas, buscando salvar
o lugar institucional, no qual o discurso é constantemente produzido de maneira
a legitimar sua posição sedentária. É parte de uma tendência que não pode ser
superada institucionalmente. Nesse sentido, de acordo com Avelino (2007), vale
destacar que as instituições são responsáveis por conectar os indivíduos à
lógica do poder. Esse autor afirma que no interior de uma instituição o indivíduo deve se
dobrar às regras da sua organização e, assim, é dominado por suas finalidades em
nome das quais decisões são tomadas em conformidade com a ordem do Estado.
Assim, segundo Avelino (2013), as instituições, articulam a existência do
indivíduo com a ordem do poder. O autor afirma que atacar as instituições é
colocar em questão o próprio poder.
Vale destacar que a
instituição opera dentro da lógica e da ordem da legalidade estatal. Avelino
(2013) explica que a legalidade não é uma ordem exterior aos indivíduos, a mesma integra a sua própria subjetividade por meio da qual opera e se manifesta.
Essa, de acordo com o autor, se instala nos espíritos antes de erguer
fortalezas. O autor destaca que o rompimento com a legalidade é um ato de maior
importância.
A legalidade permite a
desigualdade social, protegendo a sua sistemática que opera através da exploração entre classes. A tendência acrítica da resolução de problemas
cotidianos capitais no interior da sociedade capitalista, opera pela lógica da legalidade, e nesse sentido beneficia o
sistema que produz e mantem as desigualdades sociais.
E é justamente para não
cair nessa tendência que se torna preciso melhor definir as bases
ético-crítico-políticas da Psicologia do Diálogo. E quais seriam essas bases? A
Psicologia do Diálogo, enquanto crítica da psicologia do discurso pós-moderna,
é uma psicologia com base anarquista. O que isso quer dizer? Quer dizer que,
partimos do princípio de que não é possível superar as contradições sociais,
operando dentro da lógica sedentária do sistema que produz e mantem as
desigualdades. Não é possível resolver tal problema no conforto das
instituições, nas quais os homens fazem moradas narcísicas, se tornando parte integrante
do Estado, o qual buscam defender direta ou indiretamente através da sua função,
seja ela qual for. A psicologia, seja a das instituições acadêmicas, seja a das
instituições profissionais, irá procurar legitimar e defender o seu lugar, ora
através de propostas reformistas no sentido de uma transformação social
adaptativa, ora no tratamento individualizante dos ditos “problemas
psicológicos”, que tendem reduzir a complexidade das múltiplas determinações.
Tendo consciência dessa
realidade, acreditamos que a Psicologia do Dialogo, que tem como objetos de
estudo as relações interpessoais, o diálogo, o discurso, se nutrindo de uma
base anarquista, anti-estatal e anti-institucional, pode melhor desenvolver sua
compreensão sobre os seus objetos e assim melhor contribuir em ações dialógicas
para a libertação da coletividade humana. Acreditamos que é somente pelo
diálogo que pode haver o despertar da sensibilidade coletiva, necessária para o
real reconhecimento das contradições sociais. O que torna possível pensar em
estratégias para o enfrentamento do Estado e suas instituições.
Não pode haver diálogo
onde existe opressão, onde as instituições, como órgãos sedentários do Estado,
trabalham de maneira a efetuar a lógica da dominação, da alienação, da
exploração. Aí só há espaço para o discurso legitimador que privilegia uma classe
em detrimento de outra. Não pode haver diálogo em uma relação autoritarista, uma
relação que não permita o questionamento da própria estrutura social. Assim, é
necessário pensar e praticar o diálogo
libertário que, para além das definições buberianas (2001, 2009), possa criar condições
para o enfrentamento do problema da exploração, da desigualdade, da injustiça,
da miséria, entre outros, não ficando restrito a ideia e a práxis de um encontro (EU-TU)
ilhado na sociedade capitalista neoliberal.
Notas:
1 O presente texto
está disponível nesse link:
2 Aqui descrevo parte de uma experiência de uma especialização em Filosofia Clínica.
3 Sobre Filosofia
Clínica e sua crítica ver “Crítica aos Fundamentos e Prática da Filosofia
Clínica” disponível no link abaixo:
Referências
AVELINO,
N. As revoltas de Junho e o anarquismo. Revista
Espaço Acadêmico. Ano XVII, 2013.
BUBER, Martin. Eu e Tu. 10 ed. São
Paulo: Cenaturo, 137 p. 2001.
BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São
Paulo. Perspectiva, 2009.
PECHULA,
M. A. A filosofia e seus usos: crítica e
acomodação. 204 p. Tese (Programa de Pós-Graduação em Educação).
Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, 2007.
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