sábado, 2 de dezembro de 2017

A Psicologia do Diálogo é ética e politicamente anarquista

Algum tempo atrás escrevi um ensaio, disponível nesse blog1, sobre as possibilidades de concepção de uma Psicologia do Diálogo. A partir da minha experiência teórica e prática com grupos, pensando as relações interpessoais, propus algumas definições de diálogo e problematizei como a psicologia, ciência burguesa que trabalhou e ainda trabalha para o capitalismo, o Estado e suas instituições, poderia contribuir para o desenvolvimento humano para além das ideologias.
Em tal ensaio, descrevi algumas proposições ético-políticas iniciais para a concepção dessa Psicologia do Diálogo, após discutir os conceitos de diálogo, discurso, dialogicidade e discursividade.  Essa psicologia, ontologicamente, se revelou crítica da psicologia do discurso, que se desenvolve na pós-modernidade, legitimando a individualidade em detrimento da coletividade e contribuindo, do ponto de vista das relações humanas, para a perpetuação da lógica do sistema que produz e mantem as desigualdades. Essas proposições são:    
  • ·         Amor e compromisso à humanidade (humanismo), acima de tudo.
  • ·         Humildade para aceitação do outro.
  • ·         Respeito às diferenças individuais e culturais.
  • ·         Capacidade para uma escuta empática e dialógica.
  • ·         Disposição para o engajamento humano em projetos coletivos.
  • ·         Coragem para se opor ao individualismo discursivo a-dialógico e anti-dialógico, próprio do sistema capitalista neoliberal.
Embora, dentre as proposições para a existência da Psicologia do Diálogo, tenha proposto o “humanismo”, é importante não confundir com o humanismo tradicional (cristão; renascentista; positivista) - esse que a psicologia do discurso também se utiliza de seus aspectos ideológicos para a legitimação do sistema que produz e mantem as desigualdades sociais. Basta olharmos pra a história do movimento humanista para perceber o quanto esse serviu na construção de discursos para legitimar as práticas burguesas, constituindo as bases de uma racionalidade elitista que justifica a dominação humana, permitindo a segregação e as desigualdades sociais. Humanismo aqui também não significa reforçar o narcisismo humano, colocando o mesmo no centro do mundo, como ideologicamente os nossos burgueses intelectuais pensaram e escreveram combatendo os valores da nobreza conservadora, mas reconhecer enquanto humana aquilo que é de competência e responsabilidade do homem: o mundo humano. Reconhecer o mundo enquanto concreto para além das representações encantadas e ideológicas.  
E quanto à questão do respeito às diferenças individuais e culturais? É possível falar em respeito em uma sociedade de classes, no qual a injustiça está em sua lógica, na forma como está organizada? Bem, devemos ter cuidado ao problematizar essa questão. Se olharmos de perto, perceberemos que a ideologia do respeito às diferenças também contribui para o sistema que produz e mantem as desigualdades. Essa é, em parte, produzida pela dinâmica do capitalismo neoliberal. Tal ideologia é usada para legitimar e justificar as diferenças entre classes sociais, por meio de discursos, como por exemplo, os da meritocracia que buscam justificar a ascensão social e a existência da sociedade de classes.
Uma diferença primordial e concreta que organiza esse sistema pode ser definida na categoria: classe -dominante e dominada. A classe dominante é composta por aqueles que detêm os meios de produção e o capital. A classe dominada é composta por aqueles que vendem a sua força de trabalho para receber uma pequena fatia dessa produção. Nesse tipo de organização, respeitar significa aceitar o sistema tal como ele está estruturado, as relações de dominação entre classe dominada e dominante; significa obedecer à lei, curvar-se diante da autoridade estatal; significa participar da lógica. E então?
Quando falamos em diferenças individuais, implica em considerar a subjetividade do indivíduo, as características biológicas, psicológicas e sociais que definem uma pessoa, que está em um mundo, em uma época, que interage com seus semelhantes em uma sociedade marcada pela lógica da dominação, da exploração e da desigualdade. No que compete às diferenças culturais, entendemos as múltiplas determinações biopsicossociais que definem certa organização civilizatória. Uma organização civilizatória se difere de outra por um conjunto de características secundárias, mas se assemelham na sua estrutura, essa constituída e organizada pela presença de um organismo estatal.
Em termos concretos, respeitar as diferenças individuais e culturais significa compreender a pessoa e a cultura em suas múltiplas determinações. Significa compreender o seu discurso, o que há por detrás. Respeitar, nessa perspectiva, não significa aceitar, tampouco concordar com determinados discursos, ou seja, com a tentativa de legitimação por parte de seu lugar subjetivo e/ou social. Respeitar significa questionar: entender o processo da pessoa e da cultura, seus problemas, suas contradições. O respeito, propriamente dito, nesse sentido, só pode ser pensado e realizado por meio de uma ética libertária que tem a coletividade como objeto.
Quando falamos de “disposição para projetos coletivos”, nos referimos a projetos que buscam, através da formação de grupos, proporcionar e/ou criar condições para o desenvolvimento de uma consciência libertária frente às contradições sociais do sistema que produz e mantem as desigualdades. Trata-se de projetos cuja finalidade é o enfrentamento dos valores capitalistas neoliberais, propondo atividades cooperativas que os contraponha. A greve, o boicote, a manifestação contra a violência estatal representam formas legítimas de engajamento em projetos coletivos, pois envolvem não somente a discussão sobre a opressão do Estado, mas uma ação coletiva cujo sentido é atacar esse tipo de organização social.
Nessa atual fase do neoliberalismo, é preciso ter cuidado mesmo com a noção de projetos coletivos. A apropriação da ideia de projeto coletivo, da cooperação é usada a favor do capital como acontecem nas diversas instituições, dentre as quais as empresas. Nessas últimas, o coaching e o psicólogo organizacional realizam dinâmicas grupais e outras técnicas psicológicas, discursam sobre a importância da cooperação e do trabalho em equipe, passam exercícios para, no fim das contas, melhor adaptar os trabalhadores à dinâmica de produção, na sua maximização, alienando-os e explorando-os.
Resumindo: mesmo esses princípios ético-políticos que propomos para a existência de uma Psicologia do Diálogo, quando desprovido de uma noção e um entendimento da complexidade, podem contribuir com a lógica que estamos questionando, se forem usados em prol do Estado e suas instituições. Um indivíduo pode realizar um discurso sobre diálogo e alteridade, negando em sua práxis o exercício desses e rejeitando a participação democrática do outro, e mesmo assim sair com a consciência de ser dialógico e democrático, tal como é o caso do filósofo clínico Lúcio Packter. Em suas aulas de Filosofia Clínica2, Packter evocava discursos de alteridade, da necessidade da compreensão do outro e sua historicidade, no entanto, quando um aluno questionava aspectos de sua teoria, ele agia defensivamente de maneira a-dialógica e anti-dialógica, combatendo tais ideias com tom arrogante, contradizendo, em sua prática interpessoal, o que defendia em sua teoria. Esse tipo de cisão entre pensamento e ação é muito comum no mundo pós-moderno que incentiva, pela individualização das causas e dos problemas, um variado número de propostas. Muitas dessas excludentes entre si.
A Filosofia Clínica3 é um exemplo de uma dessas propostas que surgem para atender as demandas do capitalismo neoliberal, não possuindo uma base ético-crítico-política que considere o seu lugar frente a esse, se centrando, assim como a ciência psicológica tradicional e infelizmente boa parte da psicologia contemporânea, no indivíduo isolado, em sua problemática subjetiva. A proposta da Filosofia Clínica deriva de uma tendência mundial que Pechula (2007) chama de Filosofia Prática. Entre tais propostas constam também as abordagens de Gerd Achenbach, Marc Sautet e Lou Marinoff (PECHULA, 2007).
Segundo Pechula (2007), Gerd Achenbauch teria sido o inaugurador dessa proposta, montando um consultório filosófico na Alemanha em 1981. A autora destaca que Marc Sautet abriu um consultório particular e orientava debates filosóficos no Café des Phares em Paris desde 1992, e que Lou Marinoff oferecia aconselhamento filosófico (além de outros trabalhos) desde o início da década de noventa em Nova York. Essas propostas trazem a ideia da filosofia ser usada para resolução de problemas cotidianos. E como são pensados esses problemas? São pensados como problemas inerentes aos sujeitos e que podem ser resolvidos através de discussões filosóficas em Cafés, de aconselhamento filosófico e das racionalizantes sessões com o filósofo clínico. 
É necessário, no desenvolvimento de uma proposta, pensar nas bases ético-crítico-políticas, sobretudo para não incorrer no erro das já citadas, que surgem para resolver problemas cotidianos capitais não indo além de uma reforma, de uma adaptação do sujeito ao sistema que produz e mantem as desigualdades, coisa que a própria psicologia científica vem fazendo, com a diferença de que o faz com estudos e técnicas mais avançadas - de um ponto de vista acadêmico e institucional - tendo maior engajamento institucional ao redor do mundo.
A psicologia científica, mesmo em seu viés crítico, não consegue ir além de seu viés institucional, seja ele acadêmico ou profissional. A instituição, como órgão sedentário do Estado, sobrevive de sua demanda, e irá consciente ou inconscientemente defender o seu lugar e com isso o mesmo. Jamais irá se opor seriamente. Por isso suas propostas de transformação serão sempre reformistas, buscando salvar o lugar institucional, no qual o discurso é constantemente produzido de maneira a legitimar sua posição sedentária. É parte de uma tendência que não pode ser superada institucionalmente. Nesse sentido, de acordo com Avelino (2007), vale destacar que as instituições são responsáveis por conectar os indivíduos à lógica do poder. Esse autor afirma que no interior de uma instituição o indivíduo deve se dobrar às regras da sua organização e, assim, é dominado por suas finalidades em nome das quais decisões são tomadas em conformidade com a ordem do Estado. Assim, segundo Avelino (2013), as instituições, articulam a existência do indivíduo com a ordem do poder. O autor afirma que atacar as instituições é colocar em questão o próprio poder.
Vale destacar que a instituição opera dentro da lógica e da ordem da legalidade estatal. Avelino (2013) explica que a legalidade não é uma ordem exterior aos indivíduos, a mesma integra a sua própria subjetividade por meio da qual opera e se manifesta. Essa, de acordo com o autor, se instala nos espíritos antes de erguer fortalezas. O autor destaca que o rompimento com a legalidade é um ato de maior importância.
A legalidade permite a desigualdade social, protegendo a sua sistemática que opera através da exploração entre classes. A tendência acrítica da resolução de problemas cotidianos capitais no interior da sociedade capitalista, opera pela lógica da legalidade, e nesse sentido beneficia o sistema que produz e mantem as desigualdades sociais.
E é justamente para não cair nessa tendência que se torna preciso melhor definir as bases ético-crítico-políticas da Psicologia do Diálogo. E quais seriam essas bases? A Psicologia do Diálogo, enquanto crítica da psicologia do discurso pós-moderna, é uma psicologia com base anarquista. O que isso quer dizer? Quer dizer que, partimos do princípio de que não é possível superar as contradições sociais, operando dentro da lógica sedentária do sistema que produz e mantem as desigualdades. Não é possível resolver tal problema no conforto das instituições, nas quais os homens fazem moradas narcísicas, se tornando parte integrante do Estado, o qual buscam defender direta ou indiretamente através da sua função, seja ela qual for. A psicologia, seja a das instituições acadêmicas, seja a das instituições profissionais, irá procurar legitimar e defender o seu lugar, ora através de propostas reformistas no sentido de uma transformação social adaptativa, ora no tratamento individualizante dos ditos “problemas psicológicos”, que tendem reduzir a complexidade das múltiplas determinações.   
Tendo consciência dessa realidade, acreditamos que a Psicologia do Dialogo, que tem como objetos de estudo as relações interpessoais, o diálogo, o discurso, se nutrindo de uma base anarquista, anti-estatal e anti-institucional, pode melhor desenvolver sua compreensão sobre os seus objetos e assim melhor contribuir em ações dialógicas para a libertação da coletividade humana. Acreditamos que é somente pelo diálogo que pode haver o despertar da sensibilidade coletiva, necessária para o real reconhecimento das contradições sociais. O que torna possível pensar em estratégias para  o enfrentamento do Estado e suas instituições.
Não pode haver diálogo onde existe opressão, onde as instituições, como órgãos sedentários do Estado, trabalham de maneira a efetuar a lógica da dominação, da alienação, da exploração. Aí só há espaço para o discurso legitimador que privilegia uma classe em detrimento de outra. Não pode haver diálogo em uma relação autoritarista, uma relação que não permita o questionamento da própria estrutura social. Assim, é necessário pensar e praticar o diálogo libertário que, para além das definições buberianas (2001, 2009), possa criar condições para o enfrentamento do problema da exploração, da desigualdade, da injustiça, da miséria, entre outros, não ficando restrito a ideia e a práxis de um encontro (EU-TU) ilhado na sociedade capitalista neoliberal. 
           
Notas:
1 O presente texto está disponível nesse link:

2 Aqui descrevo parte de uma experiência de uma especialização em Filosofia Clínica.

3 Sobre Filosofia Clínica e sua crítica ver “Crítica aos Fundamentos e Prática da Filosofia Clínica” disponível no link abaixo:

Referências

AVELINO, N. As revoltas de Junho e o anarquismo. Revista Espaço Acadêmico. Ano XVII, 2013.


BUBER, Martin. Eu e Tu. 10 ed.  São Paulo: Cenaturo, 137 p. 2001.


BUBER, Martin.  Do diálogo e do dialógico. São Paulo. Perspectiva, 2009.


PECHULA, M. A. A filosofia e seus usos: crítica e acomodação. 204 p. Tese (Programa de Pós-Graduação em Educação). Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, 2007.


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