quinta-feira, 18 de junho de 2015

Vida, Existência e Essência: uma leitura existencial das origens



            Neste ensaio, pretendo discutir três categorias conceituais - Vida, Existência e Essência -  no intuito de esclarecer e fundamentar a sistematização filosófica que venho desenvolvendo neste Blog1. Esses conceitos são de extrema importância para compreender o processo histórico-existencial do ser humano.
            Compreendo Vida como "substrato biológico que anima a matéria, lhe conferindo um sistema orgânico o qual nasce, cresce, desenvolve, reproduz e morre. Essa matéria animada possui leis fixas, cuja aplicabilidade se encontra também na matéria inanimada inorgânica. Essa semelhança é explicada na ideia de que a segunda deu origem a primeira. Na verdade, a matéria animada, a vida, é a parte acidental de uma causa maior chamada natureza bruta. Essa última produziu a primeira, num processo de transformação que podemos entender como evolução. A vida, como nos demonstrou Darwin, obedece ao princípio da evolução biológica que ocorre em função da seleção natural. A evolução biológica é o resultado de uma interação entre matéria animada e inanimada. Como parte do grande todo - a natureza bruta - a vida também se transforma, obedecendo as mesmas leis rígidas.
            Essa matéria animada, catalogada em espécies e em organismos, não é independente do seu meio ambiente, possuindo uma relação simbiótica com ele. O organismo individual é o representante da espécie, a especificidade dessa matéria animada. Possui uma temporalidade mais ou menos determinada, o que se entende como tempo de vida. Esse  é sempre um elo de transição e nunca um fim propriamente dito. O fim é o princípio geral: a perpetuação.  Pois o que interessa para a espécie e a vida em-si é a perpetuação dessa matéria animada - assim como o filósofo Schopenhauer bem definiu em sua teoria da vontade. Nesse sentido, pode-se afirmar que a vontade contida em cada indivíduo orgânico é um fragmento da Vontade Biológica que governa irracionalmente todos os seres vivos. E o principal objetivo dessa vontade é a perpetuação de si mesma. É nesse sentido que o organismo individual, portador do plasma biológico, não pode ser um fim, mas um meio, pois o que é evolutivamente conservado não é o indivíduo orgânico, mas a vontade biológica que retroalimenta a si própria no interior de uma lógica maior: a Vontade Geral. Essa formula é válida para toda a matéria animada e inanimada que conhecemos empiricamente e que especulamos ora pela lógica matemática, ora pela lógica conceitual.  
            Passarei agora para uma análise mais particular: a do ser humano. Para isso permitam-me que busque referência em dois grandes teóricos da natureza humana: Arthur Schopenhauer e Sigmund Freud.  
            Schopenhauer chamou de vontade de vida a manifestação dessa vontade biológica que é encontrada em todos os seres vivos. Freud, possivelmente sob a influência desse filósofo, usou o conceito de pulsão de vida para referir-se ao impulso da ordem da sexualidade, guiado pelo principio do prazer, que motiva o individuo " humano" rumo a satisfação parcial. É interessante destacar que o conceito de vontade de vida de Schopenhauer adquire uma significação genérica, referindo-se praticamente a todo reino orgânico, enquanto que o conceito de pulsão de vida em Freud refere-se particularmente ao ser humano. A pulsão de vida é a humanização da vontade geral, da qual a sexualidade é parcializada, extirpando-se do fim gerador da vontade: a perpetuação da espécie. Mas o que, realmente, marca essa transição, especificação ou transformação da vontade biológica para/em a pulsão sexual, guiada pelo princípio do prazer? O aparecimento existencial ou da consciência do homem.
            No texto "Pulsão existencial e sua meta criativa", comecei a especular esta ideia. Nele introduzi o conceito de pulsão existencial, buscando representar esse elo de transição entre vida e existência que possivelmente ocorreu no período da pré-história. A pulsão existencial foi o resultado do processo de evolução do cérebro humano e suas estruturas, envolvendo ai o desenvolvimento do pensamento, memória e da linguagem. Todo esse processo está intimamente ligado às condições ambientais e às condições sociais que não podem ser tratadas isoladamente.
            A pulsão existencial representa a transição evolutiva do instinto biológico. O homem que anteriormente inexistia enquanto ser, angustiado por essa pulsão existencial, começa a ter pequenos feixes de consciência que apreendem a noção de finitude do seu próprio ser, desembocando assim no vazio existencial. Com essa consciência, há uma defesa do organismo, próprio de uma ligação com o instinto de sobrevivência, que o impulsiona a preencher esse vazio. Esse preenchimento é realizado graças a sua capacidade de combinar imagens, reflexos perceptivos do mundo externo, armazenadas na memória, que também se desenvolve no processo evolutivo. Á essa combinação de imagens simples em imagens complexas, chamei de imaginação. E ao processo pelo qual isso foi possível de criatividade. Até então estamos falando na esfera do mundo interno, da subjetividade. Porém, a pulsão existencial, assim como o alimento que se digere no estômago de um animal, precisava ser eliminada ou expulsa, saindo do interno (subjetividade) para o externo (objetividade). O imaginário é o ambiente onde a pulsão existencial adquire sua forma, porém é na expressão que ela pode, de fato, atingir sua meta pulsional. Por essa expressão o homem-sujeito, se interconecta com o mundo material de maneira a transformá-lo em virtude de sua forma subjetiva (antropomorfismo). A partir daí temos Arte, que surge tão-somente para fechar o ciclo existencial do homem, aliviando a pulsão existencial e produzindo um sentido (essência). Em resumo, a arte surge para aliviar a necessidade existencial do homem.
            As obras de artes são uma reposta criativa do organismo humano à angustia, produzida pela pulsão existencial. Elas são resultado da relação evolutiva Vida-Existência e Essência. E em tempos pré-históricos, elas tiveram um papel essencial para a humanidade, pois preencheram as lacunas do vazio existencial, uma das primeiras reações do aparecimento existencial dos homens. O medo biológico é a primeira atividade do ser vivo ao se deparar com o mundo que, por sua vez, se revela perigoso e ameaçador. Imaginem a sensação de um homem pré-histórico que se depara com os primeiros impulsos existenciais, o intervalo que o separa dos instintos biológicos. Qual a sensação do homem ao se deparar com a ausência, o nada, o niilismo? Possivelmente. ele se aterroriza, se amedronta, em proporção semelhante ao fato de encontrar um animal, predador de sua espécie. Trata-se de uma sensação que o impulsiona a preencher esse vazio existencial, produzindo um sentido (essência) para sua emergente existência. A vontade de vida só se transforma em pulsão de vida graças a pulsão existencial. Nesse sentido, tenho uma forte e estrutural discordância com Freud: a civilização não se inicia com a repressão do princípio do prazer, mas com a elaboração criativa de sua pulsão existencial. O primeiro grande conflito do homo sapiens foi existencial, somente depois ele se torna sexual - no sentido atribuído por Freud. Pois se trata da angustia existencial, a conversão evolutiva do medo, a pulsão de autoconservação freudiana. Somente depois de superar a angustia, se é possível falar em prazer, em sexualidade. Bem, mas creio que essa questão ficará para outra discussão. Por hora me contento em apresentar as relações entre vida, existência e essência.
            Para terminar, gostaria de melhor conceituar as três categorias conceituais apresentadas. Oriunda da matéria inanimada,  a vida segue a lógica da perpetuação de si mesma, tendo os organismos como hospedeiros. É inconsciente e irracional quando pensada via consciência e razão humana. Nos animais e demais seres vivos, ela se configura em uma estrutura-função mecânica cuja determinação é rígida, variando apenas com as mudanças ambientais e a passagem do tempo (milhões de anos). Vontade de vida, conceituado por Schopenhauer, é o melhor nome para esse processo.
            Já a existência - como tenho pensado e demonstrado -  é uma categoria que só se aplica plenamente ao ser humano. Os animais e demais seres vivos vivem, mas não existem por si próprios, isto é, dependem da percepção consciente do homem para existirem. Nesse sentido, eles vivem para a natureza e existem para a consciência humana. Já a existência pode ser definida como um estado demasiado humano, cuja duração encontra-se intimamente ligada a vida (tempo de vida). Ela é uma constante, presentificada pela consciência do sujeito que vive no-mundo-no-tempo-com-os-outros-para-a-morte. Enquanto que a vida é um conceito mais genérico se referindo à matéria animada como um todo, existência é um conceito mais específico, que se refere apenas ao homem, a sua consciência. Ela representa o espaço entre o nascimento e a morte que se configura na subjetividade de um sujeito particular. Trata-se de um estado sempre presente que estabelece, via consciência, um diálogo/relação com o passado (memória) e com o futuro (desejo). É a partir da percepção nocional da existência como um estado finito que o homem entra em contato com o vazio, o nada, sendo impulsionado a recorrer a sua imaginação e com essa, posteriormente, a exercer a sua criatividade para resolução dessa problemática.
            A essência ou sentido existencial representa o resultado ou arte final desse processo. Trata-se de uma produção antropomórfica que dá conteúdo ao vazio, significando-o. Longe de ser uma descrição ou reprodução objetiva da natureza bruta, a essência representa a subjetivação humana da última que recria a realidade a partir de uma demanda existencial. As necessidades existenciais constituem as condições a priori da essência: "A existência precede a essência" Jean-Paul Sartre." Mas como apresentamos nesse ensaio a vida precede a existência e constitui, na ordem evolutiva, o seu estado primitivo.     
            Ao processo de criação da essência, motivado pela pulsão existencial, dei  o nome  de Áperion ou princípio artístico, processo que marca a entrada da subjetividade e criatividade humana na construção do mundo percebido. Como desenvolvi nos ensaios passados, tendo sua origem pré-histórica, esse processo foi integralmente intuitivo havendo uma miscigenação entre mundo interno e mundo externo, ou seja, imaginação e fato. A consciência intuitiva dos homens primitivos não foi capaz de apreender a participação subjetiva dos homens que estavam "existencializando" esse processo, centralizado-se no fato externo (criador). O fato externo é alterado pela imaginação que, seguindo a lógica da pulsão existencial, cria uma essência subjetiva que é entendida pelo humano como criadora.  Tal processo não pôde ser desvelado e conscientizado pelos humanos que estavam protagonizando o mesmo, gerando assim a contradição criatura-criador. Essa se manteve cristalizada na história cultural dos homens e, não questionada, persiste nos grandes mitos, superstições, religiões e ideologias da contemporaneidade.
            Bem, por hoje é isso! Espero que esse ensaio tenha iluminado um pouco essas categorias tão complexas. No mais, esse conceitos precisam ser melhor teorizados e  melhor ajustados ao corpo da teoria, mas nos ajudam a compreender muitas questões e problematizar outras sobre o nosso processo histórico-existencial.



Notas:


Referências bibliográficas:


DARWIN, C.(2005).. A origem das espécies. Lelo & Irmão.

FREUD, S. (2004). Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico. Escritos sobre a psicologia do inconsciente, 1. Ed. Imago
 
FREUD, S. (1915/2004). Pulsões e destinos da pulsão. Obras Psicológicas de Sigmund Freud, 133-173. Ed. Imago.

FREUD, S. Além do princípio do prazer. Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Ed. Imago.

SHOPENHAUER, Arthur. Metafisica do belo. Ed. Unesco.

SHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Ed. Contraponto.


            

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