quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O reencantamento do mundo pela arte: Esbouço para uma teoria artística da existência (por Alvinan Magno)

                                                                                 És livre, escolhe, ou seja: inventa. (Jean Paul Sartre)
Introdução

Anteriormente, esboçamos uma crítica ao progresso humano, estabelecendo o conceito de “desencantamento total do mundo”, revisando e adaptando o conceito de weber a contemporaneidade. O “desencantamento total do mundo” não pretende ser uma extensão doutrinária do positivismo de Auguste Comte, no qual a ciência assume o papel de precursora no desenvolvimento progressivo da humanidade. Ao contrario, o conceito busca eliminar todo e qualquer “encanto”, ou seja, todas as representações que alimentam as fantasias, ora geradas pelas ideologias, que buscam através do discurso justificar a dominação capitalista, ora geradas pela introjeção de elementos místicos existentes na cultura, que buscam conservar o significante do “sagrado”.  Embora o positivismo desconsidere os mitos e as explicações anímicas a respeito das coisas, ele deposita sobre a ciência uma caracterização correspondente a um sistema religioso, o que pode ser percebido na termologia utilizada por Comte tais como: catecismo positivista, igreja positivista... Além de estabelecer uma justificativa ideológica alimentando a exploração capitalista, o positivismo sacraliza a ciência, e neste sentido, em vez de desencantar, ele reforça duplamente o encantamento, a alienação e o erro.
Com a disseminação histórica do cartesianismo e sua posterior reelaboração pelo hegelianismo e pelo positivismo, houve uma supervalorização do ceticismo cientifico e da crença no progresso. Este ceticismo foi possível graças ao “desencantamento do mundo”, que aproximou o homem do corpo e da matéria. O materialismo racionalista, doutrina ideológica oriunda do iluminismo, quebrou vários mitos e tabus, devolvendo ao homem uma parte de sua potencialidade antropomórfica, antes transferida para entidades supra-terrenas. Porém ele também foi responsável pelo enfraquecimento da arte e do seu poder de expressão. Ao aproximar-se do objeto material na tentativa de quantifica-lo objetivamente, o homem se afasta da subjetividade e da autenticidade, os pré-requisitos essenciais para a produção artística. Daí surge a ciência, uma invenção matematicamente simbólica, que busca padronizar o conhecimento a uma única categoria.
Na idade média, a arte dominava intuitivamente as ações humanas através de seus arquétipos religiosos, produzindo um poderoso efeito estético na cultura. Um exemplo são as belíssimas obras arquitetônicas tais como as gigantescas igrejas góticas, que produziam no espectador um sentimento de pequenez diante da contemplação estética. Este efeito era encantado religiosamente, e se justificava na crença no além-mundo. Na modernidade, tal crença foi ressignificada: na religião pela reforma protestante, nas artes propriamente ditas com o renascimento e na filosofia e na politica com o iluminismo. Porém esta mudança de valores, por mais que tenha sido responsável pelas grandes transformações oriundas do sentido histórico, não refletiram na cultura de modo geral, possivelmente pela grande multidiversidade cultural no qual se encontrava as varias sociedades ocidentais. Mesmo havendo um clima favorável para a consciência de si mesma e do mundo, as diversas culturas escolheram o encanto alienatório para representarem a realidade.
Todo e qualquer encanto é produto de um delírio intuitivo, a mesma forma de produzir conhecimento oriunda da manifestação artística. Se olharmos reflexivamente a história da humanidade, iremos perceber que arte, superstição e religião estão intimamente ligadas, sendo praticamente indissociáveis. E é justamente desta fusão, nunca questionada, que surge o erro que se manteve presente nas ditas representações anímicas da contemporaneidade.
É certo que o conhecimento artístico, dado por via intuitiva, é uma das formas mais primitivas de representação da realidade. A arte sempre esteve presente na humanidade, desde os tempos da pré-historia até a contemporaneidade, sendo uma externação material dos sentimentos e emoções da espécie humana na realidade. Para compreendermos a essência do conhecimento artístico e a sua relação com a mitologia, faz-se necessário compreender a intuição, processo pelo qual se dá a arte.   

A intuição

Como já foi dito: a intuição é uma das formas mais antigas de produção e representação do conhecimento. Trata-se da transposição humana do impulso instintivo para a percepção consciente ou da consciência.
No começo havia o instinto animalesco que operava sobre o organismo em sintonia mecânica com a natureza. Por motivos adaptativos, a possibilidade cognitiva que havia nos primeiros humanóides começou a ser preenchida de experiências. Com este “preenchimento” houve o aparecimento da intuição, a primeira via de acessibilidade ao conhecimento e a consciência. Porém este meio de conhecer, por ser espontâneo e ainda manter um vínculo inconsciente ao instinto, era insuficiente para uma análise abstrata da realidade. Podemos comparar a intuição a uma criança de quatro anos, que já recebeu suas primeiras influências cognitivas do mundo externo, porém ainda não é capaz de abstrair, consciente e reflexivamente, os diversos fenômenos da realidade.
O homem pré-histórico intuitivo não era capaz de capaz de abstrair, isto é refletir o mundo encadeando ideias e formando conceitos. Seu pensamento e linguagem ainda eram muito rudimentares. Porém, ele já começava a tomar pequenos feixes de consciência da sua existência enquanto ser humano no mundo com os outros, saindo de sua primitiva condição animalesca, evoluindo-se. Com o desenvolvimento da consciência intuitiva ocorre o aparecimento existencial do homem! Entretanto, em decorrência deste desenvolvimento consciente surge no homem a “angustia”, a transposição conversiva do medo biológico. Se a intuição, na escala existencial-evolutiva, representa o amadurecimento do organismo inconsciente, a angustia representa o amadurecimento do medo. A angustia é um dos primeiros sentimentos existenciais do homem, e por meio dela foi possível ao homem pré-histórico tomar consciência da sua mortalidade e assim do vazio existencial.
O vazio existencial obrigou o ser humano pré-histórico a buscar um sentido para a então recém chegada “existência”.  E esse sentido foi criado pela intuição, produzindo as primeiras representações “fantasiosas”. Tais representações eram conteúdos das primeiras percepções conscientes.
A intuição não era capaz de perceber racional e reflexivamente o funcionamento da natureza, e teve de criar formas simples, porém organizadas, para acessar e compreender o mundo. A estas formas compreensivas que representam o conhecimento fantasioso, chamamos de “mito”. O mito representa a linguagem do pensamento intuitivo que se organiza no mundo por meio de arquétipos. Os arquétipos são criações intuitivas simbólicas externadas artisticamente na realidade mundana. Um exemplo de arquétipo no cenário pre-histórico são as pinturas rupestres, as estátuas esculturais e os vasos fúnebres; nestes exemplos, se é possível perceber a preocupação do homem das cavernas com essência do ser, que transcende a mera vivência instintiva da necessidade animal, descobrindo a necessidade existencial. Por meio da conceituação e dos exemplos, se  é possível compreender toda engenhosidade da intuição que, para produzir sentido, se utiliza da imaginação,  tampando as lacunas (vazio existencial) do que antes era desconhecido.
A todo este processo de criação intuitiva de significado, chamamos de principio artístico! Este princípio foi o responsável pela criação de todos os símbolos fantásticos e mágicos, que se conservaram historicamente por meio das superstições, fragmentada pela cultura, e por meio dos grandes sistemas religiosos. A ideia de magia, de sobrenatural, e todas as convenções presente nos sistemas religiosos contemporâneo, nada mais são que produtos do imaginário coletivo ancestral que, devido a incapacidade reflexiva, recorreu a intuição. A diferença da intuição do homem das cavernas para o homem contemporâneo apenas consiste na quantidade e qualidade de informações, adquiridas no processo histórico-evolutivo. Enquanto que o homem da caverna, para explicar o fenômeno da existência e inexistência, apenas conseguia formular imaginações supersticiosas, baseadas em suas pouquíssimas experiências conscientes, o homem contemporâneo consegue justificar e até mesmo criar sistemas religiosos carregados de conteúdos imaginativos.
Em geral, pode-se dizer que a intuição foi a responsável pelas primeiras percepções históricas da realidade existente, trazendo simultaneamente a ativação do principio artístico, que produziu todos os significados míticos, mitológicos e estéticos da humanidade. Esses significados- ora conservados e transmitidos historicamente, ora reformulados erroneamente pela intuição- estão presente na contemporaneidade, e necessitam ser revistos a luz de uma nova compreensão, pois se encontram imersos em um conjunto de ideologias que inibem a reflexão autêntica e uma conceituação a altura.    
           
 Princípio artístico, encantamento e desencantamento

O princípio artístico representa a capacidade humana de produzir significados (mitológicos, místicos, estéticos, essenciais), por meio da transformação da natureza original. Trata-se de uma lei ontológica que compreende toda antropologia humana, seja ela qual for. Todas as culturas humanas possuem significados intuitivos, que tem sua origem fundamentada no principio artístico, a força antropomórfica que inconscientemente os produz. Tais significados têm guiado as ações do homem na história, alimentando o eterno ciclo de encantamento. O motivo de tal fenômeno encontra sua compreensão, no que podemos chamar de contradição criatura-criador. O criador, o ser homem, movido por angustias emergenciais, cria intuitivamente significados (criatura) que, não sendo percebidos integral e conscientemente (intuição), voltam para ele como sendo “significados criadores”, inibindo assim a compreensão do princípio artístico. Os significados que na realidade são criaturas, assumem a função de criador, colocando o homem como um mero espectador de sua própria obra de arte, reforçando o encantamento, a submissão ao erro e o encobrimento do principio artístico. As criações culturais anímicas- tidas como fenômenos criadores- tem sua origem nesta contradição.
 Com o desencantamento do mundo- da modernidade- essa via de encantamento começa a ser revista, porém segue dois polos opostos: A ciência, positivista e materialista e a arte moderna, intuitiva e estética. A ciência defende a quantificação do conhecimento, ou seja, sua objetividade, a arte a qualificação, ou seja, sua subjetividade. As duas desenvolveram caminhos extremamente opostos, porém ambas novamente encobriram o principio artístico: o homem foi tirado de seu lugar de criador, e lançado como criatura em um universo de tendências genéricas: sendo escravo da senhora natureza e dependente de ídolos e criações artísticas. O desencantamento do mundo quebrou muitos dos encantamentos históricos, mas não mostrou ao homem seu principio artístico, deixando este para os ídolos de seu tempo. A contradição criador-criatura ainda existe não-superada nos dias de hoje, colocando o homem em uma relação de virtualidade com a realidade.         

O desencantamento total do mundo e o reencantamento do mundo pela arte

Chamou-se de “desencantamento total do mundo” a postura ético-filosófica, que tem como finalidade desmistificar os encantamentos históricos que persistem na contemporaneidade. Assim como o materialismo-histórico, o desencantamento total do mundo se faz uma filosofia humanista e um método de análise das contradições históricas da humanidade, em particular, as contradições entre criador e criatura. Esse método e essa filosofia têm como objeto de estudo a descrição compreensiva do principio artístico, e sua relação com história do homem. Tem como objetivo ampliar a criatividade do ser homem, para que esse retome o seu lugar de criador.  O desencantamento total do mundo corresponde a um niilismo construtivista que visa aniquilar os encantos, falsidades, e as injurias históricas, levantando uma discussão ético-filosófica, tendo o homem em primeiro plano.
O desencantamento total do mundo deve se fazer uma filosofia e um método do ser humano, porém não deve ser uma postura dogmática, tampouco deve se fazer de forma obsessiva e patológica. Este deve pela crítica descrever a inautenticidade artística do ser homem contida na contradição criatura-criador, que inconscientemente faz o homem eternizar os erros do passado. E no final, o desencantamento total do mundo, deve se converter em uma postura criativa: o reencantamento do mundo pela arte. Descobrindo o principio artístico, após a superação da contradição criatura-criador, o homem pode criar autenticamente seu próprio significado, sem que esse seja uma tendência encantada por ídolos ou entidades exteriores, e assim ele pode “reencantar” com uma nova consciência e com os pés centrados no chão.
Reencantamento do mundo pela arte significa retomar conscientemente o princípio artístico e agir criativamente sobre o mundo, compreendendo a si mesmo em relação aos outros e ao mundo. Trata-se de uma postura ativa, que entende a necessidade da criação e da contemplação da beleza artística para o desenvolvimento existencial. Beleza, esta, que sempre existiu na história da humanidade, seja qual significado fosse designado. Porém o que o Reencantamento propõe é um retorno à pura criatividade humana, a um antropomorfismo artístico-existencial livre e esclarecido, que possa assumir e aceitar o ser homem tal como ele está sendo. Deve ser precedido do desencantamento total do mundo, sua condição de existência.
 O reencantamento do mundo pela arte convida o homem a refletir sobre sua existência e a entrar em contato com seu lado artístico, para construir assim seus significados essenciais que possam servir para a compreensão da sua subjetividade, da objetividade das relações humanas e do seu mundo circundante.
     
Referencias bibliográficas

COMTE, AUGUSTE. Curso de filosofia positiva; discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; catecismo positivista. Nova Cultural, 1988.

VASCONCELOS, Ana. Manual compacto de filosofia. São Paulo: Rideel, 2010

PIERUCCI, Antônio Flávio. desencantamento do mundo, O. Editora 34, 2003.

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

3 comentários:

  1. Como é bom ler conteúdo de qualidade!

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  2. Obrigado, Elisabete! Fico feliz de estar contribuindo para sua leitura!

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  3. Leitura do vazio... sai de nenhum lugar pra ir pra lugar nenhum!!!

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