Neste
ensaio, pretendo discutir três categorias conceituais - Vida, Existência e
Essência - no intuito de esclarecer e
fundamentar a sistematização filosófica que venho desenvolvendo neste Blog1.
Esses conceitos são de extrema importância para compreender o processo histórico-existencial
do ser humano.
Compreendo
Vida como "substrato biológico que anima a matéria, lhe conferindo um
sistema orgânico o qual nasce, cresce, desenvolve, reproduz e morre. Essa matéria
animada possui leis fixas, cuja aplicabilidade se encontra também na matéria
inanimada inorgânica. Essa semelhança é explicada na ideia de que a segunda deu origem a primeira. Na verdade, a matéria animada, a vida, é a parte acidental
de uma causa maior chamada natureza bruta. Essa última produziu a primeira, num processo de transformação que
podemos entender como evolução. A vida, como nos demonstrou Darwin, obedece ao
princípio da evolução biológica que ocorre em função da seleção natural. A
evolução biológica é o resultado de uma interação entre matéria animada e
inanimada. Como parte do grande todo - a natureza bruta - a vida também se
transforma, obedecendo as mesmas leis rígidas.
Essa
matéria animada, catalogada em espécies e em organismos, não é independente do
seu meio ambiente, possuindo uma relação simbiótica com ele. O organismo
individual é o representante da espécie, a especificidade dessa matéria
animada. Possui uma temporalidade mais ou menos determinada, o que se entende
como tempo de vida. Esse é sempre um elo
de transição e nunca um fim propriamente dito. O fim é o princípio geral: a
perpetuação. Pois o que interessa para a
espécie e a vida em-si é a perpetuação dessa matéria animada - assim como o
filósofo Schopenhauer bem definiu em sua teoria da vontade. Nesse sentido,
pode-se afirmar que a vontade contida em cada indivíduo orgânico é um fragmento
da Vontade Biológica que governa irracionalmente todos os seres vivos. E o
principal objetivo dessa vontade é a perpetuação de si mesma. É nesse sentido
que o organismo individual, portador do plasma biológico, não pode ser um fim,
mas um meio, pois o que é evolutivamente conservado não é o indivíduo orgânico,
mas a vontade biológica que retroalimenta a si própria no interior de uma
lógica maior: a Vontade Geral. Essa formula é válida para toda a matéria
animada e inanimada que conhecemos empiricamente e que especulamos ora pela
lógica matemática, ora pela lógica conceitual.
Passarei
agora para uma análise mais particular: a do ser humano. Para isso permitam-me
que busque referência em dois grandes teóricos da natureza humana: Arthur
Schopenhauer e Sigmund Freud.
Schopenhauer
chamou de vontade de vida a manifestação dessa vontade biológica que é
encontrada em todos os seres vivos. Freud, possivelmente sob a influência desse
filósofo, usou o conceito de pulsão de vida para referir-se ao impulso da ordem
da sexualidade, guiado pelo principio do prazer, que motiva o individuo "
humano" rumo a satisfação parcial. É interessante destacar que o conceito
de vontade de vida de Schopenhauer adquire uma significação genérica,
referindo-se praticamente a todo reino orgânico, enquanto que o conceito de
pulsão de vida em Freud refere-se particularmente ao ser humano. A pulsão de
vida é a humanização da vontade geral, da qual a sexualidade é parcializada,
extirpando-se do fim gerador da vontade: a perpetuação da espécie. Mas o que,
realmente, marca essa transição, especificação ou transformação da vontade
biológica para/em a pulsão sexual, guiada pelo princípio do prazer? O
aparecimento existencial ou da consciência do homem.
No
texto "Pulsão existencial e sua meta criativa", comecei a especular
esta ideia. Nele introduzi o conceito de pulsão existencial, buscando
representar esse elo de transição entre vida e existência que possivelmente
ocorreu no período da pré-história. A pulsão existencial foi o resultado do processo
de evolução do cérebro humano e suas estruturas, envolvendo ai o
desenvolvimento do pensamento, memória e da linguagem. Todo esse processo está
intimamente ligado às condições ambientais e às condições sociais que não podem
ser tratadas isoladamente.
A
pulsão existencial representa a transição evolutiva do instinto biológico. O
homem que anteriormente inexistia enquanto ser, angustiado por essa pulsão
existencial, começa a ter pequenos feixes de consciência que apreendem a noção
de finitude do seu próprio ser, desembocando assim no vazio existencial. Com
essa consciência, há uma defesa do organismo, próprio de uma ligação com o
instinto de sobrevivência, que o impulsiona a preencher esse vazio. Esse
preenchimento é realizado graças a sua capacidade de combinar imagens, reflexos
perceptivos do mundo externo, armazenadas na memória, que também se desenvolve
no processo evolutivo. Á essa combinação de imagens simples em imagens
complexas, chamei de imaginação. E ao processo pelo qual isso foi possível de
criatividade. Até então estamos falando na esfera do mundo interno, da
subjetividade. Porém, a pulsão existencial, assim como o alimento que se digere
no estômago de um animal, precisava ser eliminada ou expulsa, saindo do interno
(subjetividade) para o externo (objetividade). O imaginário é o ambiente onde a
pulsão existencial adquire sua forma, porém é na expressão que ela pode, de
fato, atingir sua meta pulsional. Por essa expressão o homem-sujeito, se
interconecta com o mundo material de maneira a transformá-lo em virtude de sua
forma subjetiva (antropomorfismo). A partir daí temos Arte, que surge
tão-somente para fechar o ciclo existencial do homem, aliviando a pulsão
existencial e produzindo um sentido (essência). Em resumo, a arte surge para
aliviar a necessidade existencial do homem.
As
obras de artes são uma reposta criativa do organismo humano à angustia,
produzida pela pulsão existencial. Elas são resultado da relação evolutiva
Vida-Existência e Essência. E em tempos pré-históricos, elas tiveram um papel
essencial para a humanidade, pois preencheram as lacunas do vazio existencial,
uma das primeiras reações do aparecimento existencial dos homens. O medo
biológico é a primeira atividade do ser vivo ao se deparar com o mundo que, por
sua vez, se revela perigoso e ameaçador. Imaginem a sensação de um homem
pré-histórico que se depara com os primeiros impulsos existenciais, o intervalo
que o separa dos instintos biológicos. Qual a sensação do homem ao se deparar
com a ausência, o nada, o niilismo? Possivelmente. ele se aterroriza, se
amedronta, em proporção semelhante ao fato de encontrar um animal, predador de
sua espécie. Trata-se de uma sensação que o impulsiona a preencher esse vazio
existencial, produzindo um sentido (essência) para sua emergente existência. A
vontade de vida só se transforma em pulsão de vida graças a pulsão existencial.
Nesse sentido, tenho uma forte e estrutural discordância com Freud: a
civilização não se inicia com a repressão do princípio do prazer, mas com a
elaboração criativa de sua pulsão existencial. O primeiro grande conflito do
homo sapiens foi existencial, somente depois ele se torna sexual - no sentido atribuído
por Freud. Pois se trata da angustia existencial, a conversão evolutiva do
medo, a pulsão de autoconservação freudiana. Somente depois de superar a
angustia, se é possível falar em prazer, em sexualidade. Bem, mas creio que
essa questão ficará para outra discussão. Por hora me contento em apresentar as
relações entre vida, existência e essência.
Para
terminar, gostaria de melhor conceituar as três categorias conceituais
apresentadas. Oriunda da matéria inanimada,
a vida segue a lógica da perpetuação de si mesma, tendo os organismos
como hospedeiros. É inconsciente e irracional quando pensada via consciência e
razão humana. Nos animais e demais seres vivos, ela se configura em uma
estrutura-função mecânica cuja determinação é rígida, variando apenas com as
mudanças ambientais e a passagem do tempo (milhões de anos). Vontade de vida, conceituado
por Schopenhauer, é o melhor nome para esse processo.
Já
a existência - como tenho pensado e demonstrado - é uma categoria que só se aplica plenamente
ao ser humano. Os animais e demais seres vivos vivem, mas não existem por si
próprios, isto é, dependem da percepção consciente do homem para existirem.
Nesse sentido, eles vivem para a natureza e existem para a consciência humana.
Já a existência pode ser definida como um estado demasiado humano, cuja duração
encontra-se intimamente ligada a vida (tempo de vida). Ela é uma constante,
presentificada pela consciência do sujeito que vive
no-mundo-no-tempo-com-os-outros-para-a-morte. Enquanto que a vida é um conceito
mais genérico se referindo à matéria animada como um todo, existência é um
conceito mais específico, que se refere apenas ao homem, a sua consciência. Ela
representa o espaço entre o nascimento e a morte que se configura na
subjetividade de um sujeito particular. Trata-se de um estado sempre presente
que estabelece, via consciência, um diálogo/relação com o passado (memória) e
com o futuro (desejo). É a partir da percepção nocional da existência como um
estado finito que o homem entra em contato com o vazio, o nada, sendo
impulsionado a recorrer a sua imaginação e com essa, posteriormente, a exercer
a sua criatividade para resolução dessa problemática.
A
essência ou sentido existencial representa o resultado ou arte final desse
processo. Trata-se de uma produção antropomórfica que dá conteúdo ao vazio,
significando-o. Longe de ser uma descrição ou reprodução objetiva da natureza
bruta, a essência representa a subjetivação humana da última que recria a
realidade a partir de uma demanda existencial. As necessidades existenciais
constituem as condições a priori da essência: "A existência precede a
essência" Jean-Paul Sartre." Mas como apresentamos nesse ensaio a
vida precede a existência e constitui, na ordem evolutiva, o seu estado
primitivo.
Ao
processo de criação da essência, motivado pela pulsão existencial, dei o nome
de Áperion ou princípio artístico, processo que marca a entrada da subjetividade
e criatividade humana na construção do mundo percebido. Como desenvolvi nos
ensaios passados, tendo sua origem pré-histórica, esse processo foi integralmente
intuitivo havendo uma miscigenação entre mundo interno e mundo externo, ou
seja, imaginação e fato. A consciência intuitiva dos homens primitivos não foi capaz de apreender
a participação subjetiva dos homens que estavam "existencializando" esse processo, centralizado-se no fato externo (criador). O fato externo é alterado
pela imaginação que, seguindo a lógica da pulsão existencial, cria uma essência
subjetiva que é entendida pelo humano como criadora. Tal processo não pôde ser desvelado e
conscientizado pelos humanos que estavam protagonizando o mesmo, gerando assim a
contradição criatura-criador. Essa
se manteve cristalizada na história cultural dos homens e, não questionada,
persiste nos grandes mitos, superstições, religiões e ideologias da contemporaneidade.
Bem,
por hoje é isso! Espero que esse ensaio tenha iluminado um pouco essas
categorias tão complexas. No mais, esse conceitos precisam ser melhor
teorizados e melhor ajustados ao corpo
da teoria, mas nos ajudam a compreender muitas questões e problematizar outras sobre o nosso processo
histórico-existencial.
Notas:
1: Disponível em: http://alvinanmagno.blogspot.com/2012/05/o-desencantamento-total-do-mundo-por.html , http://alvinanmagno.blogspot.com/2013/11/o-reencantamento-do-mundo-pela-arte.html e http://alvinanmagno.blogspot.com/2014/06/apeiron-o-principio-artistico.html;
http://alvinanmagno.blogspot.com.br/2014/10/pulsao-existencial-e-sua-meta-criativa.html
Referências
bibliográficas:
DARWIN, C.(2005).. A
origem das espécies. Lelo & Irmão.
FREUD, S. (2004). Formulações sobre os dois princípios do
acontecer psíquico. Escritos sobre a psicologia do
inconsciente, 1.
Ed. Imago
FREUD, S. (1915/2004). Pulsões e destinos da
pulsão. Obras Psicológicas de Sigmund
Freud, 133-173. Ed. Imago.
FREUD,
S. Além do princípio do prazer. Obras
Psicológicas de Sigmund Freud. Ed. Imago.
SHOPENHAUER, Arthur. Metafisica do belo. Ed. Unesco.