És livre, escolhe, ou
seja: inventa. (Jean Paul Sartre)
Introdução
Anteriormente, esboçamos uma crítica ao progresso humano,
estabelecendo o conceito de “desencantamento total do mundo”, revisando e
adaptando o conceito de weber a contemporaneidade. O “desencantamento total do
mundo” não pretende ser uma extensão doutrinária do positivismo de Auguste
Comte, no qual a ciência assume o papel de precursora no desenvolvimento
progressivo da humanidade. Ao contrario, o conceito busca eliminar todo e
qualquer “encanto”, ou seja, todas as representações que alimentam as
fantasias, ora geradas pelas ideologias, que buscam através do discurso
justificar a dominação capitalista, ora geradas pela introjeção de elementos
místicos existentes na cultura, que buscam conservar o significante do
“sagrado”. Embora o positivismo desconsidere os mitos e as explicações anímicas
a respeito das coisas, ele deposita sobre a ciência uma caracterização correspondente a um
sistema religioso, o que pode ser percebido na termologia utilizada por Comte
tais como: catecismo positivista, igreja positivista... Além de estabelecer uma
justificativa ideológica alimentando a exploração capitalista, o positivismo
sacraliza a ciência, e neste sentido, em vez de desencantar, ele reforça
duplamente o encantamento, a alienação e o erro.
Com a disseminação histórica do cartesianismo e sua posterior
reelaboração pelo hegelianismo e pelo positivismo, houve uma supervalorização
do ceticismo cientifico e da crença no progresso. Este ceticismo foi possível
graças ao “desencantamento do mundo”, que aproximou o homem do corpo e da
matéria. O materialismo racionalista, doutrina ideológica oriunda do
iluminismo, quebrou vários mitos e tabus, devolvendo ao homem uma parte de sua
potencialidade antropomórfica, antes transferida para entidades supra-terrenas.
Porém ele também foi responsável pelo enfraquecimento da arte e do seu poder de expressão. Ao
aproximar-se do objeto material na tentativa de quantifica-lo objetivamente, o
homem se afasta da subjetividade e da autenticidade, os pré-requisitos
essenciais para a produção artística. Daí surge a ciência, uma invenção
matematicamente simbólica, que busca padronizar o conhecimento a uma única
categoria.
Na idade média, a arte dominava intuitivamente as ações
humanas através de seus arquétipos religiosos, produzindo um poderoso efeito
estético na cultura. Um exemplo são as belíssimas obras arquitetônicas tais
como as gigantescas igrejas góticas, que produziam no espectador um sentimento
de pequenez diante da contemplação estética. Este efeito era encantado religiosamente, e se justificava na crença no além-mundo. Na modernidade, tal
crença foi ressignificada: na religião pela reforma protestante, nas artes
propriamente ditas com o renascimento e na filosofia e na politica com o
iluminismo. Porém esta mudança de valores, por mais que tenha sido responsável
pelas grandes transformações oriundas do sentido histórico, não refletiram na
cultura de modo geral, possivelmente pela grande multidiversidade cultural no
qual se encontrava as varias sociedades ocidentais. Mesmo havendo um clima
favorável para a consciência de si mesma e do mundo, as diversas culturas
escolheram o encanto alienatório para representarem a realidade.
Todo e qualquer encanto é produto de um delírio intuitivo, a
mesma forma de produzir conhecimento oriunda da manifestação artística. Se
olharmos reflexivamente a história da humanidade, iremos perceber que arte,
superstição e religião estão intimamente ligadas, sendo praticamente
indissociáveis. E é justamente desta fusão, nunca questionada, que surge o erro
que se manteve presente nas ditas representações anímicas da contemporaneidade.
É certo que o conhecimento artístico, dado por via intuitiva, é
uma das formas mais primitivas de representação da realidade. A arte sempre
esteve presente na humanidade, desde os tempos da pré-historia até a
contemporaneidade, sendo uma externação material dos sentimentos e emoções da
espécie humana na realidade. Para compreendermos a essência do conhecimento
artístico e a sua relação com a mitologia, faz-se necessário compreender a
intuição, processo pelo qual se dá a arte.
A
intuição
Como já foi dito: a intuição é uma das formas mais antigas de
produção e representação do conhecimento. Trata-se da transposição humana do
impulso instintivo para a percepção consciente ou da consciência.
No começo havia o instinto animalesco que operava sobre o
organismo em sintonia mecânica com a natureza. Por motivos adaptativos, a
possibilidade cognitiva que havia nos primeiros humanóides começou a ser
preenchida de experiências. Com este “preenchimento” houve o aparecimento da
intuição, a primeira via de acessibilidade ao conhecimento e a consciência.
Porém este meio de conhecer, por ser espontâneo e ainda manter um vínculo
inconsciente ao instinto, era insuficiente para uma análise abstrata da
realidade. Podemos comparar a intuição a uma criança de quatro anos, que já
recebeu suas primeiras influências cognitivas do mundo externo, porém ainda não
é capaz de abstrair, consciente e reflexivamente, os diversos fenômenos da
realidade.
O homem pré-histórico intuitivo não era capaz de capaz de
abstrair, isto é refletir o mundo encadeando ideias e formando conceitos. Seu
pensamento e linguagem ainda eram muito rudimentares. Porém, ele já começava a
tomar pequenos feixes de consciência da sua existência enquanto ser humano no
mundo com os outros, saindo de sua primitiva condição animalesca, evoluindo-se.
Com o desenvolvimento da consciência intuitiva ocorre o aparecimento
existencial do homem! Entretanto, em decorrência deste desenvolvimento consciente surge no homem a “angustia”, a transposição conversiva do medo biológico. Se a
intuição, na escala existencial-evolutiva, representa o amadurecimento do organismo inconsciente, a angustia representa o amadurecimento do medo. A angustia é um dos
primeiros sentimentos existenciais do homem, e por meio dela foi possível ao
homem pré-histórico tomar consciência da sua mortalidade e assim do vazio
existencial.
O vazio existencial obrigou o ser humano pré-histórico a
buscar um sentido para a então recém chegada “existência”. E esse sentido
foi criado pela intuição, produzindo as primeiras representações “fantasiosas”.
Tais representações eram conteúdos das primeiras percepções conscientes.
A intuição não era capaz de perceber racional e
reflexivamente o funcionamento da natureza, e teve de criar formas simples, porém organizadas, para acessar e compreender o mundo. A estas formas compreensivas
que representam o conhecimento fantasioso, chamamos de “mito”. O mito
representa a linguagem do pensamento intuitivo que se organiza no mundo por
meio de arquétipos. Os arquétipos são criações intuitivas simbólicas externadas
artisticamente na realidade mundana. Um exemplo de arquétipo no cenário pre-histórico são as
pinturas rupestres, as estátuas esculturais e os vasos fúnebres; nestes exemplos, se é possível perceber
a preocupação do homem das cavernas com essência do ser, que transcende a mera
vivência instintiva da necessidade animal, descobrindo a necessidade
existencial. Por meio da conceituação e dos exemplos, se é possível
compreender toda engenhosidade da intuição que, para produzir sentido, se
utiliza da imaginação, tampando as lacunas (vazio existencial) do
que antes era desconhecido.
A todo este processo de criação intuitiva de significado,
chamamos de principio
artístico! Este princípio foi o responsável pela criação de todos os
símbolos fantásticos e mágicos, que se conservaram historicamente por meio das
superstições, fragmentada pela cultura, e por meio dos grandes sistemas
religiosos. A ideia de magia, de sobrenatural, e todas as convenções presente
nos sistemas religiosos contemporâneo, nada mais são que produtos do imaginário
coletivo ancestral que, devido a incapacidade reflexiva, recorreu a intuição. A
diferença da intuição do homem das cavernas para o homem contemporâneo apenas
consiste na quantidade e qualidade de informações, adquiridas no processo
histórico-evolutivo. Enquanto que o homem da caverna, para explicar o fenômeno
da existência e inexistência, apenas conseguia formular imaginações
supersticiosas, baseadas em suas pouquíssimas experiências conscientes, o homem
contemporâneo consegue justificar e até mesmo criar sistemas religiosos
carregados de conteúdos imaginativos.
Em geral, pode-se dizer que a intuição foi a responsável
pelas primeiras percepções históricas da realidade existente, trazendo
simultaneamente a ativação do principio artístico, que produziu todos os
significados míticos, mitológicos e estéticos da humanidade. Esses
significados- ora conservados e transmitidos historicamente, ora reformulados
erroneamente pela intuição- estão presente na contemporaneidade, e necessitam
ser revistos a luz de uma nova compreensão, pois se encontram imersos em um
conjunto de ideologias que inibem a reflexão autêntica e uma conceituação a
altura.
Princípio
artístico, encantamento e desencantamento
O princípio artístico representa a capacidade humana de
produzir significados (mitológicos, místicos, estéticos, essenciais), por
meio da transformação da natureza original. Trata-se de uma
lei ontológica que compreende toda antropologia humana, seja ela qual
for. Todas as culturas humanas possuem significados intuitivos, que tem sua
origem fundamentada no principio artístico, a força antropomórfica que
inconscientemente os produz. Tais significados têm guiado as ações do homem na
história, alimentando o eterno ciclo de encantamento. O motivo de tal fenômeno
encontra sua compreensão, no que podemos chamar de contradição criatura-criador. O
criador, o ser homem, movido por angustias emergenciais, cria intuitivamente
significados (criatura) que, não sendo percebidos integral e conscientemente
(intuição), voltam para ele como sendo “significados criadores”, inibindo assim
a compreensão do princípio artístico. Os significados que na realidade são
criaturas, assumem a função de criador, colocando o homem como um mero
espectador de sua própria obra de arte, reforçando o encantamento, a submissão
ao erro e o encobrimento do principio artístico. As criações culturais
anímicas- tidas como fenômenos criadores- tem sua origem nesta contradição.
Com o desencantamento do mundo- da modernidade- essa
via de encantamento começa a ser revista, porém segue dois polos opostos: A
ciência, positivista e materialista e a arte moderna, intuitiva e estética. A
ciência defende a quantificação do conhecimento, ou seja, sua objetividade, a
arte a qualificação, ou seja, sua subjetividade. As duas desenvolveram caminhos
extremamente opostos, porém ambas novamente encobriram o principio artístico: o
homem foi tirado de seu lugar de criador, e lançado como criatura em um
universo de tendências genéricas: sendo escravo da senhora natureza e
dependente de ídolos e criações artísticas. O desencantamento do mundo quebrou
muitos dos encantamentos históricos, mas não mostrou ao homem seu principio
artístico, deixando este para os ídolos de seu tempo. A contradição
criador-criatura ainda existe não-superada nos dias de hoje, colocando o homem
em uma relação de virtualidade com a realidade.
O
desencantamento total do mundo e o reencantamento do mundo pela arte
Chamou-se de “desencantamento total do mundo” a postura
ético-filosófica, que tem como finalidade desmistificar os encantamentos
históricos que persistem na contemporaneidade. Assim como o
materialismo-histórico, o desencantamento total do mundo se faz uma filosofia
humanista e um método de análise das contradições históricas da humanidade, em
particular, as contradições entre criador e criatura. Esse método e essa
filosofia têm como objeto de estudo a descrição compreensiva do principio
artístico, e sua relação com história do homem. Tem como objetivo ampliar a
criatividade do ser homem, para que esse retome o seu lugar de criador. O
desencantamento total do mundo corresponde a um niilismo construtivista que visa
aniquilar os encantos, falsidades, e as injurias históricas, levantando uma
discussão ético-filosófica, tendo o homem em primeiro plano.
O desencantamento total do mundo deve se fazer uma filosofia
e um método do ser humano, porém não deve ser uma postura dogmática, tampouco
deve se fazer de forma obsessiva e patológica. Este deve pela crítica descrever a inautenticidade artística do ser homem contida na
contradição criatura-criador, que inconscientemente faz o homem eternizar os
erros do passado. E no final, o desencantamento total do mundo, deve se
converter em uma postura criativa: o reencantamento do mundo pela arte.
Descobrindo o principio artístico, após a superação da contradição
criatura-criador, o homem pode criar autenticamente seu próprio significado,
sem que esse seja uma tendência encantada por ídolos ou entidades exteriores, e
assim ele pode “reencantar” com uma nova consciência e com os pés centrados no
chão.
Reencantamento do mundo pela arte significa retomar
conscientemente o princípio artístico e agir criativamente sobre o mundo,
compreendendo a si mesmo em relação aos outros e ao mundo. Trata-se de uma
postura ativa, que entende a necessidade da criação e da contemplação da beleza
artística para o desenvolvimento existencial. Beleza, esta, que sempre existiu
na história da humanidade, seja qual significado fosse designado. Porém o que o
Reencantamento propõe é um retorno à pura criatividade humana, a um
antropomorfismo artístico-existencial livre e esclarecido, que possa assumir e
aceitar o ser homem tal como ele está sendo. Deve ser precedido do
desencantamento total do mundo, sua condição de existência.
O reencantamento do mundo pela arte convida o homem a
refletir sobre sua existência e a entrar em contato com seu lado artístico,
para construir assim seus significados essenciais que possam servir para a
compreensão da sua subjetividade, da objetividade das relações humanas e do seu
mundo circundante.
Referencias
bibliográficas
COMTE, AUGUSTE. Curso de filosofia positiva; discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; catecismo positivista. Nova Cultural, 1988.
COMTE, AUGUSTE. Curso de filosofia positiva; discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; catecismo positivista. Nova Cultural, 1988.
VASCONCELOS,
Ana. Manual compacto de
filosofia. São Paulo: Rideel, 2010
PIERUCCI, Antônio Flávio. desencantamento do mundo,
O. Editora 34, 2003.
ARGAN, Giulio Carlo. História
da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.