sábado, 7 de junho de 2014

ÁPEIRON: O PRINCÍPIO ARTÍSTICO® (por Alvinan Magno)


Temos a arte para não morrermos da verdade (Friedrich Nietzsche).

Em minha jornada filosófica, venho refletindo e esboçando conceitos na tentativa de compreender as gêneses e o desenvolvimento do processo histórico-existencial do ser humano, para a criação de posturas ético-filosóficas autênticas que busquem superar os principais problemas da contemporaneidade. Em textos anteriores1, a partir de uma compreensão crítica da história, nomeei dois conceitos principais que representam tais posturas: o desencantamento total do mundo e o reencantamento do mundo pela arte. Nesse ensaio, conceituarei sobre o princípio artístico ou tal como ousei chamar de: Ápeiron. O descortinar pleno deste conceito trará mais argumentos para o entendimento das posturas ético-filosóficas mencionadas.
 Ápeiron é uma palavra de origem grega (ἄπειρον) que significa ilimitado, infinito e indefinido. O termo é central na teoria cosmológica de Anaximandro de Mileto, representando o quinto elemento, responsável pela criação dos demais, agua, ar, fogo e terra, estes que, para os antigos filósofos cosmológicos, eram essências que compunham o universo. Para Anaximandro, Ápeiron representa o eterno, o imutável, que teria gerado os opostos quente e frio, seco e molhado que atuaram na criação do mundo. Nesse sentido, este elemento seria responsável pelo ato da criação, o impulso compositor dos diversos mundos que, conforme a necessidade, estavam em constante processo de destruição e criação.2
Tirando o Ápeiron de seu significado cosmológico, e inserindo-o em um repertório de significado histórico-existencial, pode-se dizer que ele é o elemento criador dos diversos significados místico, estético, existencial e essencial do ser humano, que aqui chamar-se-á de “sentidos”. Porém diferente do que pensam os filósofos do cosmo, o Ápeiron ou princípio artístico será compreendido aqui como: a relação ontológica e dialética entre o mundo interno (subjetividade) e o mundo externo (objetividade), responsável pela criação do “sentido”, deixando a representatividade correspondente a uma entidade causal externa de lado, por ora. Pode-se dizer que tal princípio surge com o aparecimento existencial do homem, o que acontece em um período da pré-história quando, por motivos adaptativos, os hominídeos que obedeciam instintivamente sua natureza interna inconsciente sob as condições da natureza externa, começam a ter pequenos feixes de consciência. A partir desta, o hominídeo se torna existente, homem que sabe que sabe, e passa a ter uma história, já que esta consciência também registra suas experiências existenciais. Pode-se dizer que o homem, ao evoluir de seu estado animalesco-instintivo para um estado existencial-consciente inicia sua história, e com esta uma serie de contradições que - como foi abordado no texto anterior– são responsáveis pela conservação de paradigmas históricos que se cristalizaram na cultura. Chamou-se estas de contradição criatura-criador.
Esta contradição surge da necessidade urgente de significar o vazio existencial – que, como vimos, foi uma das primeiras reações do organismo humano diante do aparecimento da consciência, que inicialmente era intuitiva. Sobre essa consciência intuitiva ou intuição e sua urgência em significar o vazio existencial, vale citar um parágrafo do texto anterior:

A intuição não era capaz de perceber racional e reflexivamente o funcionamento da natureza, e teve de criar formas simples, porém organizadas, para acessar e compreender o mundo. A estas formas compreensivas que representam o conhecimento fantasioso, chamamos de “mito”. O mito representa a linguagem do pensamento intuitivo que se organiza no mundo por meio de arquétipos. Os arquétipos são criações intuitivas simbólicas externadas artisticamente na realidade mundana. Um exemplo de arquétipo no cenário pré-histórico são as pinturas rupestres,as estátuas esculturais e os vasos fúnebres; nestes exemplos, se é possível perceber a preocupação do homem das cavernas com essência do ser, que transcende a mera vivência instintiva da necessidade animal, descobrindo a necessidade existencial. Por meio da conceituação e dos exemplos, se é possível compreender toda engenhosidade da intuição que, para produzir sentido, se utiliza da imaginação, tampando as lacunas (vazio existencial) do que antes era desconhecido (CATÃO, A., 2013). 4

A urgência em significar sua recente situação existencial, fez com que os primeiros homens criassem intuitivamente sentidos a partir de suas primeiras percepções do mundo externo. Essas percepções por serem espontâneas não eram capazes de “abstrair” a realidade tal como esta, de fato, era, pois a consciência ainda não possuía historicidade, ou seja, experiências históricas que viriam a amadurecê-la, dando a esta uma qualidade racional (abstração). Não sendo capazes de entender o mundo racionalmente, os homens intuitivos tiveram de recorrer à imaginação para tapar as lacunas do desconhecido, criando “sentidos” para as suas existências. Estes, produzidos através de suas percepções intuitivas do mundo circundante juntamente com a interpretação de seus imaginários, se centravam sempre no mundo externo, não havendo espaço para a compreensão da participação subjetiva dos humanos que estavam experienciando o processo. Nesse sentido, houve o que chamei de “erro intuitivo”, responsável pela contradição criatura-criador que se manteve cristalizada na história do homem, nunca superada, sendo conservada nos grandes mitos religiosos, superstições, encantamentos de qualquer natureza e em algumas posturas filosóficas. Sobre a contradição criatura-criador, vale relembrar:

O criador, o ser homem, movido por angustias emergenciais, cria intuitivamente significados (criatura) que, não sendo percebidos integral e conscientemente (intuição), voltam para ele como sendo “significados criadores”, inibindo assim a compreensão do princípio artístico. Os significados que na realidade são criaturas, assumem a função de criador, colocando o homem como um mero espectador de sua própria obra de arte, reforçando o encantamento, a submissão ao erro e o encobrimento do principio artístico. As criações culturais anímicas- tidas como fenômenos criadores- tem sua origem nesta contradição (CATÃO, A.,2013).4

            O ápeiron surge então como o primeiro princípio existencial do ser humano, iniciando a contradição entre criador e criador. O homem, criador, consciente de seu sentido, porém inconsciente da causalidade real que o produziu, projeta-se no mundo, afastando de si mesmo e inicia, já em tempos pré-históricos, o que Heidegger viria a chamar de inautenticidade5, uma criação cuja essência não foi plenamente revelada. Mas, por que essa inautenticidade se conservou até a contemporaneidade, mesmo com a consciência da história? A resposta para esta questão pode estar ligada a fatores instituais, inconscientes, individuais e coletivos que agiram como determinantes para a aceitação do erro intuitivo que nossos ancestrais criaram! Existe uma força determinante no homem, que influência suas ações e esta está ligada a natureza, que a própria história não foi capaz de superar. O que não pode ser negado, tais como fazem algumas posturas fenomenológicas, sociológicas e historicistas, desprezando os fenômenos “naturais”, quando referidos ao ser humano. Nesse sentido, é necessário compreender as teorias naturalistas de Darwin e Freud, de maneira a sintetizar seus pontos essenciais, não incorrendo em suas tendências teóricas reducionistas. Pois elas apresentam uma visão complexa da vida, tanto em seu horizonte psicológico como no horizonte evolutivo. Para compreender o processo histórico-existencial do homem, será necessário acrescentar a vida (instinto, pulsão), como fenômeno natural no quadro existencial e essencial do mesmo. Ter-se-á de colocar a vida (natureza), tão defendida por Nietzsche, na afirmação sartriana “A existência precede a essência”, completando a afirmação: A vida precede a existência que precede a essência. Somente nessa ordem se pode compreender o Ápeiron - o princípio oriundo da conversão da vida em existência e desta em essência – como princípio humano, demasiado humano. 
            É a partir de uma reflexão integradora das contradições criadas pela intuição humana, no árduo processo de evolução: vida - instinto – necessidade - existência – vazio existencial – criação – essência – sentido, que se pode diagnosticar e resolver os problemas filosóficos no plano de uma ontologia real prática. E para isso, nós humanos, devemos compreender e aceitar o Ápeiron como parte integrante da nossa potencialidade antropomórfica, para que possamos desenvolver posturas ético-filosóficas compatíveis com a realidade humana e sua situacionalidade atual. Precisamos desmistificar o encantamento criado pelo Ápeiron intuitivo ancestral que se conserva na atualidade, e assumir a abstração filosófica a fim de direcionar nossa criatividade para ações éticas conscientes e autênticas. Para que possamo-nos chegar a esse patamar será necessário recorrer ao desencantamento total do mundo, que por via do questionamento apontará os tabus, mitos, erros, encantamentos, ídolos e ideologias históricas, criadas inautenticamente pelo instinto e pela intuição humana, integrando a historicidade a favor da humanidade.
O desencantamento total do mundo nos levará novamente ao Ápeiron, porém, diferente dos homens das cavernas, nós retornaremos a ele com a consciência banhada pela experiência histórica, e poderemos corrigir o erro que determinou nossos modos de agir por milhares de anos. Tendo chegado a esse estado, teremos de recriar o mundo, reencantá-lo, pois os encantamentos históricos – mesmo sendo inautênticos – proporcionaram sentidos para a existência humana e com isso a sua perpetuação histórica, provando aos humanos que são um necessário existencial. E nesse momento, tendo consciência do principio artístico, Ápeiron, como princípio gerador da existência humana, poderemos significar a arte – o diálogo ontológico e empírico entre sujeito, os seus semelhantes e o mundo objetal – como a mais evidente forma de conceber a realidade (concordando em palavras com Shopenhauer). E assim poderemos alcançar o sentido de “reencantamento do mundo pela arte”, como uma postura ético-filosófica que integrará os opostos: subjetividade e objetividade, pensamento e vida, ser e nada, superando as dicotomias e auxiliando a nossa coexistência no-mundo-com-os-outros de maneira criativa e autêntica em um contínuo processo holístico.    

Referências bibliográficas:


2 - SPINELLI, Miguel. A noção de arché no contexto da Filosofia dos Pré-Socráticos. Hypnos. Revista do Centro de Estudos da Antiguidade. ISSN 2177-5346 8 (2002).

3 - CATÃO, Alvinan. O desencantamento total do mundo. Raízes da criatividade: filosofia, ciência e arte com autenticidade. Blogger (2012).

4 – CATÃO, Alvinan. O reencantamento do mundo pela arte: esbouço para uma teoria artística da existência. Raízes da criatividade: filosofia, ciência e arte com autenticidade. Blogger (2013).

5 - BRUNS, Maria Alves; TRINDADE, Ellica. Metodologia fenomenológica: a contribuição da ontologia-hermenêutica de Martin Heidegger.In: BRUMS, M. A. T.; HOLANDA, A. F. (orgs). Psicologia e Fenomenologia: reflexões e perspectivas. Campinas, SP: Alinea, p. 77-92 (2003).