Temos a arte para não morrermos da verdade (Friedrich
Nietzsche).
Em minha jornada
filosófica, venho refletindo e esboçando conceitos na tentativa de compreender
as gêneses e o desenvolvimento do processo histórico-existencial do ser humano,
para a criação de posturas ético-filosóficas autênticas que busquem superar os
principais problemas da contemporaneidade. Em textos anteriores1, a
partir de uma compreensão crítica da história, nomeei dois conceitos principais
que representam tais posturas: o desencantamento total do mundo e o reencantamento
do mundo pela arte. Nesse ensaio, conceituarei sobre o princípio artístico ou
tal como ousei chamar de: Ápeiron. O descortinar pleno deste conceito trará
mais argumentos para o entendimento das posturas ético-filosóficas mencionadas.
Ápeiron é uma palavra de origem grega (ἄπειρον)
que significa ilimitado, infinito e indefinido. O termo é central na teoria
cosmológica de Anaximandro de Mileto, representando o quinto elemento,
responsável pela criação dos demais, agua, ar, fogo e terra, estes que, para os
antigos filósofos cosmológicos, eram essências que compunham o universo. Para
Anaximandro, Ápeiron representa o eterno, o imutável, que teria gerado os
opostos quente e frio, seco e molhado que atuaram na criação do mundo. Nesse
sentido, este elemento seria responsável pelo ato da criação, o impulso
compositor dos diversos mundos que, conforme a necessidade, estavam em
constante processo de destruição e criação.2
Tirando o Ápeiron de
seu significado cosmológico, e inserindo-o em um repertório de significado
histórico-existencial, pode-se dizer que ele é o elemento criador dos diversos
significados místico, estético, existencial e essencial do ser humano, que aqui
chamar-se-á de “sentidos”. Porém diferente do que pensam os filósofos do cosmo,
o Ápeiron ou princípio artístico será compreendido aqui como: a relação
ontológica e dialética entre o mundo interno (subjetividade) e o mundo externo
(objetividade), responsável pela criação do “sentido”, deixando a
representatividade correspondente a uma entidade causal externa de lado, por ora.
Pode-se dizer que tal princípio surge com o aparecimento existencial do homem, o
que acontece em um período da pré-história quando, por motivos adaptativos, os
hominídeos que obedeciam instintivamente sua natureza interna inconsciente sob
as condições da natureza externa, começam a ter pequenos feixes de consciência.
A partir desta, o hominídeo se torna existente, homem que sabe que sabe, e
passa a ter uma história, já que esta consciência também registra suas
experiências existenciais. Pode-se dizer que o homem, ao evoluir de seu estado
animalesco-instintivo para um estado existencial-consciente inicia sua
história, e com esta uma serie de contradições que - como foi abordado no texto
anterior3 – são responsáveis pela conservação de paradigmas históricos que se
cristalizaram na cultura. Chamou-se estas de contradição criatura-criador.
Esta contradição surge
da necessidade urgente de significar o vazio existencial – que, como vimos, foi
uma das primeiras reações do organismo humano diante do aparecimento da
consciência, que inicialmente era intuitiva. Sobre essa consciência intuitiva
ou intuição e sua urgência em significar o vazio existencial, vale citar um
parágrafo do texto anterior:
A
intuição não era capaz de perceber racional e reflexivamente o funcionamento da
natureza, e teve de criar formas simples, porém organizadas, para acessar e
compreender o mundo. A estas formas compreensivas que representam o
conhecimento fantasioso, chamamos de “mito”. O mito representa a linguagem do
pensamento intuitivo que se organiza no mundo por meio de arquétipos. Os
arquétipos são criações intuitivas simbólicas externadas artisticamente na
realidade mundana. Um exemplo de arquétipo no cenário pré-histórico são as pinturas
rupestres,as estátuas esculturais e os vasos fúnebres; nestes exemplos, se é possível perceber a
preocupação do homem das cavernas com essência do ser, que transcende a mera vivência
instintiva da necessidade animal, descobrindo a necessidade existencial. Por
meio da conceituação e dos exemplos, se é possível compreender toda
engenhosidade da intuição que, para produzir sentido, se utiliza da imaginação,
tampando as lacunas (vazio existencial) do que antes era desconhecido (CATÃO,
A., 2013). 4
A urgência em
significar sua recente situação existencial, fez com que os primeiros homens
criassem intuitivamente sentidos a partir de suas primeiras percepções do mundo
externo. Essas percepções por serem espontâneas não eram capazes de “abstrair”
a realidade tal como esta, de fato, era, pois a consciência ainda não possuía
historicidade, ou seja, experiências históricas que viriam a amadurecê-la,
dando a esta uma qualidade racional (abstração). Não sendo capazes de entender
o mundo racionalmente, os homens intuitivos tiveram de recorrer à imaginação
para tapar as lacunas do desconhecido, criando “sentidos” para as suas
existências. Estes, produzidos através de suas percepções intuitivas do mundo
circundante juntamente com a interpretação de seus imaginários, se centravam
sempre no mundo externo, não havendo espaço para a compreensão da participação
subjetiva dos humanos que estavam experienciando o processo. Nesse sentido,
houve o que chamei de “erro intuitivo”, responsável pela contradição
criatura-criador que se manteve cristalizada na história do homem, nunca
superada, sendo conservada nos grandes mitos religiosos, superstições,
encantamentos de qualquer natureza e em algumas posturas filosóficas. Sobre a
contradição criatura-criador, vale relembrar:
O
criador, o ser homem, movido por angustias emergenciais, cria intuitivamente
significados (criatura) que, não sendo percebidos integral e conscientemente
(intuição), voltam para ele como sendo “significados criadores”, inibindo assim
a compreensão do princípio artístico. Os significados que na realidade são
criaturas, assumem a função de criador, colocando o homem como um mero
espectador de sua própria obra de arte, reforçando o encantamento, a submissão
ao erro e o encobrimento do principio artístico. As criações culturais
anímicas- tidas como fenômenos criadores- tem sua origem nesta contradição
(CATÃO, A.,2013).4
O
ápeiron surge então como o primeiro princípio existencial do ser humano,
iniciando a contradição entre criador e criador. O homem, criador, consciente
de seu sentido, porém inconsciente da causalidade real que o produziu,
projeta-se no mundo, afastando de si mesmo e inicia, já em tempos
pré-históricos, o que Heidegger viria a chamar de inautenticidade5,
uma criação cuja essência não foi plenamente revelada. Mas, por que essa
inautenticidade se conservou até a contemporaneidade, mesmo com a consciência
da história? A resposta para esta questão pode estar ligada a fatores
instituais, inconscientes, individuais e coletivos que agiram como
determinantes para a aceitação do erro intuitivo que nossos ancestrais criaram!
Existe uma força determinante no homem, que influência suas ações e esta está
ligada a natureza, que a própria história não foi capaz de superar. O que não
pode ser negado, tais como fazem algumas posturas fenomenológicas, sociológicas
e historicistas, desprezando os fenômenos “naturais”, quando referidos ao ser
humano. Nesse sentido, é necessário compreender as teorias naturalistas de
Darwin e Freud, de maneira a sintetizar seus pontos essenciais, não incorrendo
em suas tendências teóricas reducionistas. Pois elas apresentam uma visão
complexa da vida, tanto em seu horizonte psicológico como no horizonte
evolutivo. Para compreender o processo histórico-existencial do homem, será
necessário acrescentar a vida (instinto, pulsão), como fenômeno natural no
quadro existencial e essencial do mesmo. Ter-se-á de colocar a vida (natureza),
tão defendida por Nietzsche, na afirmação sartriana “A existência precede a
essência”, completando a afirmação: A vida precede a existência que precede a
essência. Somente nessa ordem se pode compreender o Ápeiron - o princípio
oriundo da conversão da vida em existência e desta em essência – como princípio
humano, demasiado humano.
É
a partir de uma reflexão integradora das contradições criadas pela intuição
humana, no árduo processo de evolução: vida - instinto – necessidade -
existência – vazio existencial – criação – essência – sentido, que se pode
diagnosticar e resolver os problemas filosóficos no plano de uma ontologia real
prática. E para isso, nós humanos, devemos compreender e aceitar o Ápeiron como
parte integrante da nossa potencialidade antropomórfica, para que possamos
desenvolver posturas ético-filosóficas compatíveis com a realidade humana e sua
situacionalidade atual. Precisamos desmistificar o encantamento criado pelo
Ápeiron intuitivo ancestral que se conserva na atualidade, e assumir a abstração
filosófica a fim de direcionar nossa criatividade para ações éticas conscientes
e autênticas. Para que possamo-nos chegar a esse patamar será necessário
recorrer ao desencantamento total do mundo, que por via do questionamento
apontará os tabus, mitos, erros, encantamentos, ídolos e ideologias históricas,
criadas inautenticamente pelo instinto e pela intuição humana, integrando a
historicidade a favor da humanidade.
O desencantamento total
do mundo nos levará novamente ao Ápeiron, porém, diferente dos homens das
cavernas, nós retornaremos a ele com a consciência banhada pela experiência
histórica, e poderemos corrigir o erro que determinou nossos modos de agir por
milhares de anos. Tendo chegado a esse estado, teremos de recriar o mundo,
reencantá-lo, pois os encantamentos históricos – mesmo sendo inautênticos –
proporcionaram sentidos para a existência humana e com isso a sua perpetuação
histórica, provando aos humanos que são um necessário
existencial. E nesse momento, tendo consciência do principio artístico,
Ápeiron, como princípio gerador da existência humana, poderemos significar a
arte – o diálogo ontológico e empírico entre sujeito, os seus semelhantes e o
mundo objetal – como a mais evidente forma de conceber a realidade (concordando
em palavras com Shopenhauer). E assim poderemos alcançar o sentido de “reencantamento do mundo pela arte”, como
uma postura ético-filosófica que integrará os opostos: subjetividade e objetividade,
pensamento e vida, ser e nada, superando as dicotomias e auxiliando a nossa
coexistência no-mundo-com-os-outros de maneira criativa e autêntica em um
contínuo processo holístico.
Referências
bibliográficas:
1 – Disponível em: http://alvinanmagno.blogspot.com/2012/05/o-desencantamento-total-do-mundo-por.html e http://alvinanmagno.blogspot.com/2013/11/o-reencantamento-do-mundo-pela-arte.html.
2 - SPINELLI, Miguel. A noção de arché
no contexto da Filosofia dos Pré-Socráticos. Hypnos. Revista do Centro de Estudos da Antiguidade. ISSN 2177-5346 8
(2002).
3 - CATÃO, Alvinan. O desencantamento total do mundo. Raízes da criatividade: filosofia, ciência e arte com autenticidade. Blogger (2012).
4 – CATÃO, Alvinan. O reencantamento do
mundo pela arte: esbouço para uma teoria artística da existência. Raízes da criatividade: filosofia,
ciência e arte com autenticidade. Blogger (2013).
5 - BRUNS, Maria Alves; TRINDADE,
Ellica. Metodologia fenomenológica: a contribuição da ontologia-hermenêutica de
Martin Heidegger.In: BRUMS, M. A. T.; HOLANDA, A. F. (orgs). Psicologia e Fenomenologia: reflexões e perspectivas.
Campinas, SP: Alinea, p. 77-92 (2003).