Aos
trinta e cinco anos de idade, Pedro Martins se encontrava numa situação que a
maioria dos brasileiros diria ser “estável”. Era casado com a bela Maria
Beduína, tinha dois filhos lindos, a pequena Cristiene de cinco anos de idade e
jovem Cristian de sete. Trabalhava de gerente em uma importante empresa da
cidade de A..., tendo um salário igual a vinte e cinco mil reais. Possuía também uma microempresa de cosmético,
na qual era sócio com a esposa. Ele morava com a família em uma luxuosa
residência no centro da cidade, tinha três carros (ambos importados), gozando
do conforto e do bem estar. Levava uma vida tranquila: viajava com a
família aos finais de semana e sempre estava presente na vida familiar.
Entre suas atividades, julgava ter somente um vício: a caça. Herdada do seu
pai, a prática dessa dita “arte venatória” atrelava-se aos princípios morais e
religiosos de Pedro.
Em toda sua vida, ele sempre foi um fiel
seguidor da doutrina cristã, pertencendo à igreja Evangélica. Todas as quartas
feiras e sábados, a família martins frequentava a igreja da luz divina, que
se situava próximo ao centro da cidade, a aproximadamente duas quadras de sua
casa. Pedro era amigo pessoal do pastor Waldemiro que sempre frequentava sua
residência. Waldemiro era tido por ele como um fiel companheiro. Quando estava
com problemas emocionais ou existenciais, recorria ao pastor que sempre lhe
acolhia com um conselho amistoso.
Pedro
possuía uma rotina demasiadamente controlada. Era sempre pontual com seus
horários, e nunca chegara atrasado a seus compromissos, nem faltara um sequer
dia de serviço. Trabalhava das sete da manhã às sete da noite. Em dez anos de
trabalho essa foi a sua trajetória. Era sempre muito honesto em tudo que fazia,
e sempre comunicava a esposa tudo que lhe ocorria em seu dia. O jantar com
filhos era algo sagrado. Às oito horas da noite todos já estavam em casa na
mesa a sua espera para iniciarem o jantar. As crianças estudavam numa escola
particular, cujo período integral se fazia das oito da manhã às seis da tarde;
e a esposa trabalha na loja do meio dia as três. Após o jantar, ele se sentava
na enorme varanda para brincar com os filhos, ou jogar videogame. E assim
prosseguia da forma mais agradável possível.
Mas o destino não poderia deixá-lo viver assim
em um conto de fadas passível e agradável, do contrário não haveria história,
mas sim uma descrição comportamental enfadonha e insensível. Pois bem, para que
isso não ocorra, deixe-me acrescentar uma dosagem de realidade...
No
ano em que a pequena Cristiene fizera sete anos, Pedro começou a ser invadido
por uma estranha angustia que nunca havia sentido antes. Era uma sensação
desagradavelmente perturbadora. No dia em que esta angustia lhe apertou o
peito, ele resolveu relatar a esposa. Os dois já estavam na cama. As crianças
estavam dormindo.
-
Amor, ultimamente estou me sentido estranho. Como se estivesse faltando algo.
Não sei o que é... Tenho você, dois filhos lindos! Nossa situação financeira é estabilizada... Agradeço a Deus todos os dias por tudo! Penso nas pessoas que
não tem nem o que comer...
-
Querido acalme-se! É somente uma confusão mental. Você está cansado. Descanse e
tudo vai passar! Reze comigo e tudo vai voltar ao normal...
Nesta
noite, Pedro e sua mulher rezaram dezenas de vezes o “pai nosso” e outras
orações prontas da igreja. Mas Pedro não obteve o alívio prometido pela mulher.
Ele só conseguiu dormir, pois fora vencido pelo cansaço oracional. No dia
seguinte, após o trabalho, foi a igreja da luz divina pagar o dízimo, se aproveitando da ocasião
para conversar com o pastor sobre o que estava lhe passando...
Quando
chegou à casa de Waldemiro- que era no fundo da igreja- encontrou a residência
silenciosa. Era por volta das sete e meia da noite! Antes de apertar a companhia, resolveu certificar se a porta estava
trancada. A porta se abriu revelando uma enorme sala de estar. O pastor estava
no centro da sala contando dinheiro sobre uma mesinha de vidro. Havia quatro
pilhas de aproximadamente 15 centímetros de notas de cem.
-
Bom noite, pastor Waldemiro! Vim pagar o dízimo.
-
Bom noite, irmão Pedro. Estou aqui contabilizando as contribuições dos nossos
fieis. Esse ano vai dar pra fazer muita coisa pra igreja e para a comunidade.
-
Aqui está: além dos mil habituais, têm mais quinhentos! Fui promovido este mês,
e achei justo repassar para igreja.
Incomodado
e envergonhado com a visita inesperada de Pedro, Waldemiro pegou o dinheiro
dele e os demais sobre a mesa e colocou no enorme cofre na parede que ficava
atrás de um belíssimo quadro de Calvino, engenhosamente pintado à mão. Depois
se sentou mais Pedro no sofá. Pedro se esforçava mentalmente para não
interpretar a cena que presenciara.
-
Como vão as coisas, meu grande amigo?- Disse waldemiro, já preparando uma dosagem
de vinho e antes que Pedro respondesse, ele o ofereceu para o amigo contribuinte.
- Quer vinho 50 anos? Jesus iria adorar esse vinho.
-
Não, obrigado pastor! Gostaria de conversar com o senhor sobre algo que me
incomoda.
-
Pode falar, estou aqui as suas ordens.
-
Pastor, ultimamente, ando tendo sentimentos e emoções estranhas. Ando
descontente, como se algo me faltasse. E quando olho pra minha família, pra
minha condição, acabo me culpando por estar sentido este vazio.
-
Como anda sua relação com Deus? Disse o pastor, desta vez acendendo um charuto cubano.
-
Creio que esteja estável. Cumpro a risca cada mandamento da lei sagrada. Rezo
todos os dias. E o senhor bem sabe: Vou sempre à igreja e estou sempre em dia
com o dízimo.
-
Sim, meu amigo, disso bem sei! É um bom fiel- disse o pastor, posteriormente
soltando a fumaça deleitosamente. – mas me diga, e como anda a relação com a
sua mulher.
-
Como assim, pastor?
-
Eu digo, na intimidade! Como anda a vida sexual de vocês?
Pedro
ficou tremendamente desconfortável com a pergunta de Waldemiro. E com uma
postura mecânica e defensiva respondeu:
-
Vai muito bem pastor. Maria e eu transamos quatro vezes por semana. Quanto a
isso não posso reclamar- disse Pedro.
Waldemiro
levantou o sobrolho, apreciou mais um gole de vinho e só depois pronunciou:
-
Meu bom amigo Pedro, olhe para sua condição: tem uma mulher linda, dois filhos
graciosos; é um homem bem sucedido nos negócios, tem uma casa linda. Eu
francamente te invejo muito, Pedro. Não há motivos para isso. Agradeça muito a
Jesus Cristo por tudo que tem, e reze, meu irmão, que esse devaneio, essa confusão, irá
passar.
Pedro
foi embora com aquela angustia ainda mais intensificada. A conversa com o
pastor não havia lhe indicado a luz do fim do túnel, como acontecera nas outras
vezes; tal conversa apenas escureceu as cavernas do seu coração.
No
dia seguinte ao encontro com Waldemiro, Pedro foi trabalhar com um terrível
pressentimento. Ao chegar à empresa, presenciou um tumultuo que, nos dez anos
de trabalho, nunca havia acontecido. A polícia federal estava ali com um
batalhão de homem se mobilizando por todos os cantos da empresa. Ao se
informar sobre o que ocorrera, soubera, por um agente da polícia, que a empresa
havia sido fechada devido a questões jurídicas. Os donos daquela empresa, tão
bem conhecidos por Pedro, estavam sendo indiciados por usarem-na para lavagem
de dinheiro, oriundo do tráfico de drogas e pessoas. Pedro foi obrigado a
passar por um longo interrogatório. Depois de responder as
perguntas da polícia, Pedro foi dispensado, sob o aviso que o contato iria ser
mantido. Durante todo interrogatório, ele defendeu a hipótese de um possível
engano. Mas esta foi quebrada com as diversas evidências contrárias demostradas
pelos agentes. No final, um deles lhe disse:
-
Nós temos certeza, senhor Pedro! Como lhe disse, esta investigação vem sendo
realizada há três anos. E todas as provas nos levaram a esses burgueses
safados. O Juiz já decretou a prisão. Um deles, o tal de “Arlinho Ratoeira ”, já
está preso...
Quando
saiu da empresa, ele estava bastante perplexo. Não sabia o que fazer. Não havia
ainda telefonado para a mulher para lhe comunicar sobre o ocorrido. Resolveu ir à loja
de cosmético e avisa-la pessoalmente.
Ao
chegar à loja, não encontrou sua mulher. Lá estava somente a sua funcionária “Magali”
que lhe informou:
-
A senhora Maria Beduína foi pra casa. Disse que tinha de resolver umas coisas.
Não disse o que era. O senhor quer que eu ligue pra ela?
-
Não, Magali, pode deixar, estou indo pra lá- disse Pedro com o coração pulsando
violentamente! Aquele fúnebre sentimento que lhe acompanhara naqueles últimos dias,
começara a adquirir uma forma cada vez mais perturbadora. O vazio, que antes
sentia, estava sendo preenchido por algo malévolo, inconsciente e aterrador. Sua intuição lhe revelava um futuro catastrófico que ele já não mais podia
controlar!
Seguindo tal impulso, ele maquinalmente pegou o carro e se direcionou para casa.
Chegando lá, estacionou na calçada e resolveu ir a pé. Abriu o portão com o
controle remoto e entrou silenciosamente. A casa possuía três andares, sendo
rodeada por uma extensa área de lazer. Quando chegou próximo à piscina,
percebeu que havia copos e uma garrafa de bebida sobre uma das várias mesinhas.
Ao chegar mais próximo, viu que era uma garrafa de vinho 50 anos. Na sua mente
veio a lembrança “Jesus iria adorar esse vinho”, e junto com ela um sentimento
odioso. Não pensou duas vezes, correu a passos discretos em direção ao porão, e lá se
apossou de uma das suas espingardas de caça, guardada em um enorme cofre. Ele a
carregou com dois cartuchos, engatilhando-a. Subsequentemente, empunhou a arma
e saiu do porão.
Todas
as portas da casa estavam trancadas, e ele teve o mínimo de cuidado para destrancá-las
sem produzir barulho. Ao subir as escadas que levavam para o andar dos quartos,
Pedro já começara a ouvir o ruído da cama e alguns gemidos, estes que vinham do
seu quarto. Próximo a este, no corredor do segundo andar, havia um enorme
quadro da passagem bíblica onde Jesus transforma água em vinho, do qual Pedro havia encomendado a um famoso artista da cidade. Ele olhou para a imagem e ficou alguns segundos a
pensar, ao som dos estrondosos grunhidos que iam amentando gradativamente. E
por fim, balançou a cabeça negativamente. Correu para o quarto, chutou e arrombou a porta, dando consecutivamente dois tiros. O primeiro atingiu as costas de
Maria, o segundo a cabeça de Waldemiro. Ambos morreram na hora.
Pedro
largou a arma. Naquele momento, sentiu seu ser dominado por uma ausência
predominante. Em seu corpo não havia mais vontade, em sua alma havia somente a infeliz
consciência de estar vivo. Enquanto descia as escadas, suas memórias iam sendo
apagadas e sua existência desaparecendo. Quando sentou na cadeira da mesinha
onde estava o vinho, não era mais Pedro, marido, pai de dois filhos,
trabalhador, religioso; mas sim uma carcaça existencial, que mal via a hora de
desaparecer por completo. Entretanto, um pequeno impulso que ainda o ligava ao mundo carnal lhe fez
saborear uma dosagem do vinho 50 anos, antes festejado por Maria e Waldemiro. O
gosto era bom, mas isso já não lhe importava mais. Após este ato, Pedro
levantou e disse com voz firme, concretizando seu sentimento:
-
Minha vida foi água e se transformou em vinho, e novamente em água. – dito isso,
se lançou na piscina, deixando a água sufocar seus pulmões.
Nesse
mesmo momento, Cristian e Cristiene se abraçavam debaixo de uma árvore na
escola. Era a hora da recreação, e eles estavam se reconciliando após uma briga infantil.
-
Eu te amo, maninho! Não quero brigar com você mais nunca- disse Cristiene
emocionada ao abraçar fortemente o irmão.
Fim